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| Foto: Christophe Simon/AFP

Os destinos dados a duas prisões de estrangeiros ocorridas em 2007 ajudam a entender o que foi o Brasil do petismo. Durante os Jogos Pan-Americanos realizados no Rio de Janeiro, dois boxeadores cubanos, Erislandy Lara e Guillermo Rigondeaux, ambos campeões mundiais, conseguiram driblar a rígida vigilância dos agentes de Fidel Castro e fugiram da vila onde ficavam hospedados os atletas. Fidel os considerou traidores do país, e a polícia brasileira começou uma caçada, encontrando-os na Região dos Lagos fluminense. Os dois foram rapidamente devolvidos a Cuba. O então ministro da Justiça brasileiro, Tarso Genro, alegou que eles haviam manifestado o desejo de voltar à sua pátria – muito improvável, pois qualquer atleta cubano conhece o fim de desertores. De fato, Lara e Rigondeaux foram proibidos de praticar o esporte até conseguirem uma nova fuga, em 2008 e 2009 respectivamente.

Enquanto o único “crime” de Rigondeaux e Lara era o de querer escapar de uma ditadura cruel, um criminoso real teve sorte muito melhor. Em 1987, o terrorista italiano Cesare Battisti havia sido condenado à prisão perpétua na Itália pela participação em quatro homicídios cometidos por seu grupo, o Proletários Armados pelo Comunismo, no fim dos anos 70. Antes disso, já tinha sido preso, escapado da cadeia, fugido para a França, dali para o México e de volta para a França. Com a possibilidade de ser extraditado, em 2004, entrou no Brasil com documentos falsos e só foi capturado no início de 2007. No ano seguinte, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) negou seu pedido de refúgio. Isso não impediu que, em 2009, o mesmo Tarso Genro que foi tão duro com os boxeadores cubanos resolvesse atropelar a decisão do Conare e conceder ao terrorista o status de refugiado político, apesar de sua condenação na Itália ter seguido todos os trâmites legais, conforme havia sido reconhecido pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos; não se tratava de um “julgamento de exceção”, mas de uma condenação ocorrida em plena vigência de um regime democrático.

Se o STF houvesse dado a Battisti o mesmo tratamento que se dá nos outros casos de extradição, o caso já estaria resolvido

No entanto, restava ainda ao Supremo Tribunal Federal julgar o pedido de extradição feito pela Itália, com quem o Brasil tem um tratado sobre o tema. O processo se arrastou ao longo de 2009 até que, em novembro daquele ano, a corte tomou uma decisão incomum: autorizou a extradição de Battisti, que ainda estava preso no Brasil, mas ao mesmo tempo colocou a decisão final nas mãos do presidente Lula, quando o normal seria apenas mandar cumprir a decisão nos casos em que a extradição é concedida. Lula, claro, livrou a pele de seu companheiro de ideologia no último dia de seu mandato, apoiado em um parecer da Advocacia-Geral da União segundo o qual Battisti correria risco de sofrer perseguição na Itália. Em junho de 2011, Battisti foi solto.

Uma reviravolta na situação do ex-terrorista parecia improvável até a eleição de Jair Bolsonaro, que já tinha se manifestado em favor da extradição. Na quinta-feira, o ministro do STF Luiz Fux revogou um habeas corpus preventivo que ele mesmo havia concedido a Battisti em 2017 – à época, o governo da Itália havia solicitado a Michel Temer que revisasse a decisão de Lula. Fux ainda ordenou a prisão do terrorista, pois há um pedido de prisão feito pela Interpol por evasão de divisas e lavagem de dinheiro, referente a uma tentativa de Battisti de entrar na Bolívia com dinheiro em espécie em 2016. Nesta sexta-feira, Temer assinou a extradição de Battisti – que, até a publicação deste editorial, era considerado foragido, não tendo sido encontrado em sua residência no litoral paulista.

O que está em jogo, nesta sequência de decisões, é a própria natureza da extradição. Se a entendermos como um ato que envolve a aplicação do direito penal, Battisti estaria protegido pelo princípio da retroatividade benigna, previsto no artigo 5.º, inciso LX, da Constituição, pelo qual as leis – ou atos assemelháveis a leis – não retroagem em prejuízo do réu, apenas em seu benefício. Assim, no caso de Battisti, uma vez dada a decisão favorável por Lula, nenhum outro presidente poderia decidir extraditá-lo, pois a nova decisão viria em seu prejuízo.

Leia também: Lula errará por último? (editorial de 20 de novembro de 2009)

Leia também: O rosto das vítimas (editorial de 18 de janeiro de 2011)

Mas também é possível enxergar a extradição de uma forma diferente: pura e simplesmente um ato de soberania nacional, ao qual não se aplica a retroatividade característica da lei penal. Por este ângulo, a investigação, o julgamento e a punição de Battisti são atos do Estado italiano, cabendo ao Brasil decidir extraditá-lo ou não dentro dos critérios definidos pelo tratado existente entre esses dois países. Ao não se aplicar a retroatividade benigna à extradição, é possível que uma decisão seja revista em prejuízo do indivíduo em questão. Assim, estaria justificada a possibilidade de Temer (ou Bolsonaro) assinar a extradição de Battisti, revertendo a decisão de Lula.

De qualquer maneira, por causa do pedido de prisão da Interpol pelo episódio de 2016, é evidente que Battisti não tem mais como ficar livre. Mesmo que não venha a cumprir pena na Itália pelos atos de terrorismo que levaram à condenação de 1987, deverá ser processado e julgado por lavagem de dinheiro e evasão de divisas e, se condenado, pode ficar detido no Brasil.

Toda essa controvérsia, no fim, só existe por causa do erro absurdo cometido pelo Supremo em 2009, quando a corte resolveu que Lula poderia descumprir o decidido pelo plenário. Se o STF houvesse dado a Battisti o mesmo tratamento que se dá nos outros casos de extradição, sem se deixar levar por conveniências políticas, o terrorista já estaria em seu país, pagando pelos seus crimes, para alívio da sociedade italiana e, especialmente, das famílias daqueles que o grupo de Battisti matou, e cujas histórias foram contadas pela Gazeta do Povo em 2010.

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