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Editorial

“Ainda estou aqui” e o reconhecimento da arte brasileira

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O diretor Walter Salles posa com o Oscar recebido por "Ainda estou aqui". (Foto: Caroline Brehman/EFE/EPA)

O cinema brasileiro fez história no último domingo, quando Ainda Estou Aqui conquistou o Oscar de Melhor Filme Internacional. Produções nacionais vinham concorrendo ao principal prêmio do cinema mundial desde a década de 60 do século passado, quando O Pagador de Promessas foi indicado em 1963 – a coprodução ítalo-franco-brasileira Orfeu Negro até levou a estatueta em 1960, mas entrou na disputa representando a França, não o Brasil. Desde então, filmes brasileiros conseguiram indicações em várias categorias (não apenas filme estrangeiro, mas também documentário, animação, direção, roteiro, edição e interpretação), mas nunca um brasileiro havia levado o prêmio por uma produção nacional, o que mudou agora, com o filme de Walter Salles. Ainda estou aqui também fez história ao ser o primeiro longa brasileiro indicado ao maior prêmio da noite, o de Melhor Filme; e Fernanda Torres, que havia vencido o Globo de Ouro de Melhor Atriz, também foi indicada, repetindo o feito de sua mãe, Fernanda Montenegro, com Central do Brasil (1999), mas não conquistou o Oscar.

Até mesmo a maior festa popular brasileira, o carnaval, parou para acompanhar o momento da premiação, com inúmeras manifestações de júbilo pela conquista do Oscar, o que dá uma ideia do clima de Copa do Mundo que o cinema criou. É claro que ninguém é obrigado a torcer por um filme brasileiro, assim como ninguém é obrigado a torcer pela seleção nacional de futebol ou pelos atletas olímpicos que representam o país. Mas é inegável que a premiação inédita merece ser saudada, não apenas pela qualidade do filme em si, mas também pelo que representa, em termos de reconhecimento da cultura nacional, de novas portas que podem se abrir para talentos brasileiros, e de oportunidades para que o investimento na produção artística nacional seja incentivado.

“Ainda estou aqui” foi capaz de envolver público e crítica fora do Brasil porque a luta de uma pessoa para descobrir o paradeiro de um familiar desaparecido é um tema universal

O Brasil já tinha recebido destaque em vários dos principais festivais de cinema do mundo, ganhando uma Palma de Ouro em Cannes (com O Pagador de Promessas) e dois Ursos de Ouro em Berlim (com Central do Brasil e Tropa de Elite), além de outros prêmios – a própria Fernanda Torres também já tinha sido premiada em Cannes, em 1986. Mas o Oscar tem o condão de disparar uma onda de interesse no cinema nacional, tanto em termos de procura por produções passadas quanto de expectativa por produções futuras, alcançando um público que vai além dos cinéfilos mais inveterados. Essa é uma oportunidade que tem sido ressaltada desde antes da noite do Oscar por cineastas brasileiros de diferentes tendências políticas: “Essa exposição do Globo de Ouro e do Oscar é excepcional”, disse Josias Teófilo (diretor de O Jardim das Aflições, documentário sobre Olavo de Carvalho) ao site Metrópoles um mês atrás, acrescentando que “nossa indústria tem muito potencial. A questão é saber se vai aproveitá-lo ou não”.

A relutância de parte dos brasileiros em relação a Ainda estou aqui se deve a declarações políticas de membros da equipe do filme, como Walter Salles e Fernanda Torres, e também a sua temática. O filme se passa durante a ditadura militar brasileira e retrata o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, levado por membros da Aeronáutica e cujo corpo jamais foi encontrado. Esta, aliás, é uma razão pela qual Ainda estou aqui foi capaz de envolver público e crítica fora do Brasil: a luta de uma pessoa para descobrir o paradeiro de um familiar desaparecido é um tema universal, que o cinema explora por meio dos mais diversos gêneros, do drama até os filmes de ação, passando pelo suspense psicológico. Que Rubens Paiva tenha sido tirado dos seus de forma até pacífica, com uma expectativa não cumprida de retorno à casa, é algo que realça ainda mais o sofrimento de Eunice e seus filhos.

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Quanto à queixa a respeito de “mais um filme sobre a ditadura”, nunca é demais recordar que a arte é um meio poderoso pelo qual um país lida com suas feridas históricas. Os norte-americanos seguem produzindo filmes sobre a Guerra do Vietnã, o período da escravidão e o regime de segregação racial que levou ao movimento pelos direitos civis. O alemão A Vida dos Outros recorda o regime de vigilância total imposto pelos comunistas por meio da Stasi; o tcheco Kolya tem como protagonista um músico ostracizado pela ditadura socialista devido, entre outros motivos, à fuga de seu irmão para o Ocidente; o argentino A História Oficial trata do esquema pelo qual o governo entregava para adoção os filhos de presos políticos mortos pela ditadura daquele país – todos esses três longas receberam o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2007, 1997 e 1986 respectivamente.

Goste-se ou não deste fato, a ditadura militar é nossa ferida histórica mais recente. Tivemos, por 20 anos, um regime que cassou todas as liberdades democráticas, que censurou, que exilou, que prendeu sem motivo, que torturou e que matou – inclusive pessoas que não tinham a menor relação com os grupos terroristas de esquerda e cujo “crime” não passou da manifestação pública de discordância em relação ao governo. Essas são verdades históricas que não convém apagar. E, como ninguém é proprietário exclusivo da interpretação ou do legado de Ainda estou aqui, qualquer brasileiro é totalmente livre para estabelecer analogias com o período bastante anômalo que o Brasil vive hoje, também marcado por liberdades em crise, censura, prisões políticas e abolição do devido processo legal – violações, em certos aspectos, tão ou até mais graves que as verificadas entre 1964 e 1985.

O êxito de Ainda estou aqui nas principais premiações do cinema mundial deve servir não apenas de reconhecimento da capacidade brasileira em termos de produção cinematográfica, mas também de incentivo para que surjam mais investidores e patrocinadores neste ramo. A arte é um dos campos em que o ser humano pode demonstrar o que tem de melhor; que o Brasil possa ser uma referência na missão de mostrar ao mundo o bom, o belo e o verdadeiro por meio da produção artística.

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