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 | Lula Marques/Agência PT/Fotos Públicas
| Foto: Lula Marques/Agência PT/Fotos Públicas

Durante o totalitarismo soviético, um expediente comum adotado pelo governo era a adulteração de fotografias: especialmente após a ascensão de Josef Stalin ao poder, com seus expurgos, prisões e execuções, ex-figurões caídos em desgraça e que apareciam em fotos com os líderes soviéticos eram removidos dessas imagens. Para todos os efeitos, era como se nunca tivessem participado de determinado evento – o caso mais célebre é o de Leon Trotsky, apagado de fotografias que registravam discursos de Vladimir Lenin nos primeiros anos após a Revolução Russa.

Algo semelhante está sendo proposto no Brasil: o Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas do Paraná, o Sindicato dos Servidores do Magistério Municipal de Curitiba o Centro Acadêmico Hugo Simas (do curso de Direito da UFPR) querem que as fotos dos presidentes da ditadura militar – Humberto de Alencar Castello Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo, além de Ranieri Mazzili, civil que assumiu a Presidência nos dias seguintes ao golpe que depôs João Goulart, em 1964 – sejam removidos da galeria de retratos do Palácio do Planalto. Um furor iconoclasta que se assemelha ao visto recentemente nos Estados Unidos, onde grupos pleiteiam a remoção de estátuas de líderes confederados da Guerra Civil.

Que fiquem os retratos, e que ao contemplá-los possamos nos recordar da época em que a democracia foi sufocada

A ação civil pública contém contradições, como quando alega que “permitir que os retratos de ditadores figurem como se tivessem sido eleitos pelo povo contradiz com o ideário democrático e republicano”. Ora, não é essa a questão: a galeria do Planalto contempla todos os que foram presidentes do país, não apenas os “eleitos pelo povo”. Deodoro da Fonseca e Getúlio Vargas tomaram o poder pela força, em 1889 e 1930; Floriano Peixoto e José Sarney foram vice-presidentes não escolhidos pelo voto popular – Peixoto, ainda por cima, governou ditatorialmente, assim como Getúlio. Mas os autores da ação civil pública não parecem preocupados com isso, contradizendo o próprio discurso.

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Além de a mera remoção dos retratos não ser capaz de apagar o fato inegável de que as pessoas em questão efetivamente governaram o país, a ação tem um problema de fundo, ao lidar de forma errada com uma questão mais ampla: o que fazer com as homenagens a personalidades cujo legado reúne tanto feitos condenáveis quanto ações meritórias. Robert E. Lee, antes de liderar o exército sulista (associado à defesa da escravidão), se destacou a serviço dos Estados Unidos na guerra contra o México. O mesmo se pode dizer dos presidentes militares: apesar de tudo o que sabemos sobre as arbitrariedades da ditadura, negar seus feitos positivos – como as grandes obras de infraestrutura ou a criação de órgãos de referência, como a Embrapa – seria falsear a realidade. Especialmente neste caso, o que tem ocorrido, aliás, é um trabalho de substituição das referências aos militares por homenagens a terroristas como Carlos Lamarca e Carlos Marighella, que quiseram implantar no Brasil uma outra ditadura, de esquerda, demonstrando que o que move certos iconoclastas não é bem o “ideário democrático e republicano”, mas a paixão ideológica.

Que fiquem os retratos, e que ao contemplá-los possamos nos recordar deste período em que a democracia foi sufocada no país e das circunstâncias que culminaram no golpe de 1964 e no endurecimento da ditadura, em 1968. Apagar ou “sanear” a história é tornar mais difícil que aprendamos com ela.

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