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Editorial

As “bets” e os jovens fora da faculdade

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Bets se tornaram ilusão de dinheiro fácil e avançam entre os mais pobres e os jovens. (Foto: Fernando Jasper/Gazeta do Povo)

Nesta semana, um dado assustador mostrou outra faceta dos efeitos perniciosos dos onipresentes sites e aplicativos de apostas esportivas, as chamadas “bets”, ou de cassinos on-line como o “jogo do tigrinho”. Segundo um levantamento da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes), feito com quase 12 mil jovens de 18 a 35 anos em março, um terço dos entrevistados deixou de iniciar um curso de graduação por causa de gastos com bets; eles afirmaram que, para poderem se matricular em uma faculdade no ano que vem, precisarão largar o hábito – ou o vício – das apostas para conseguirem arcar com as mensalidades.

A porcentagem de jovens que terão de adiar o sonho do ensino superior por causa das bets é maior nas regiões Nordeste (44%) e Sudeste (41%). Ainda mais preocupante é o fato de os jovens de menor renda serem os mais afetados neste aspecto pelas despesas com apostas: 43% dos entrevistados das classes D e E disseram que, para entrar na faculdade, precisarão parar de jogar; é o dobro da proporção encontrada na classe A, com 22% – e, ainda assim, ver que mais de um quinto dos jovens mais privilegiados do país não iniciaram os estudos universitários por causa de jogos demonstra o tamanho do estrago que as bets causam nas finanças de qualquer família, mesmo as mais abastadas.

O estudo da Abmes descobriu que as apostas não estão apenas impedindo jovens de entrar na faculdade: elas também estão atrasando a conclusão do curso para os que já são universitários: 14% deles disseram já ter atrasado mensalidades, ou até mesmo terem de trancar o curso, porque faltou dinheiro, usado para apostar. Segundo as mantenedoras de faculdades, os números da pesquisa indicam que quase 1 milhão de jovens que poderiam estar no ensino superior seguem longe das graduações. Uma tragédia, especialmente para os mais pobres, já que o papel do diploma universitário como ferramenta de mobilidade social já está amplamente demonstrado – em 2024, a Fundação Getulio Vargas, analisando dados da Pnad Contínua, concluiu que trabalhadores com ensino superior completo recebem, em média, mais que o dobro dos trabalhadores que têm no máximo o certificado do ensino médio.

Não é nada desproporcional nem paternalista manter os cassinos proibidos, bem como impor restrições severas às bets

A pesquisa da Abmes se junta a outro número que causou furor quando de sua divulgação: em um único mês de 2024, 20% dos beneficiários do Bolsa Família haviam gasto R$ 3 bilhões com bets, ou um quinto do total gasto pelo governo naquele mês com o programa de transferência de renda. O dado inclui apenas as transações com Pix, não aquelas com cartão de débito ou crédito – ou seja, o gasto total poderia ser ainda maior. Na mesma época, uma startup do setor financeiro mostrou que 30% dos brasileiros com conta em banco haviam feito empréstimos para apostar ao longo dos 12 meses anteriores.

Brasileiros se endividando para jogar, gastando dinheiro necessário à subsistência com bets, e adiando seus estudos por causa das apostas. O que mais seria necessário para que as autoridades agissem com mais firmeza em relação a esses sites e aplicativos? Mas, em Brasília, são muito poucos os que parecem interessados em fazer algo concreto. O governo federal só enxerga as bets como fonte de arrecadação. O Senado até realizou uma CPI, que entregou ao país momentos constrangedores, com senadores tietando uma influenciadora suspeita de fazer publicidade enganosa de bets. O relatório final pedia alguns indiciamentos, a proibição total do “tigrinho” e regras mais rígidas para bets, com restrições à publicidade; o texto, no entanto, foi rejeitado por diferença de um voto – algo que não havia acontecido nos últimos dez anos.

Enquanto rejeita o relatório da CPI das Bets, o Senado discute a possível legalização dos cassinos, dos bingos e do jogo do bicho. O Centrão e parte do governo (como o Ministério do Turismo) apoia a proposta, mas a bancada evangélica tem mantido posição contrária firme; o risco de que o texto não passasse fez com que o presidente da casa, Davi Alcolumbre, tirasse o projeto da pauta da última terça-feira, sem data para a retomada das discussões. Lula, mais uma vez de olho na arrecadação, já prometeu que não vetará o projeto caso ele seja aprovado.

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Não há benefício em termos de arrecadação, geração de empregos e incentivo ao turismo (este último, bastante exagerado pelo relator do PL dos cassinos, o senador Irajá) que justifique a legalização de uma atividade cujos danos econômicos, sanitários e sociais são imensamente superiores: vício, famílias destruídas e arruinadas, crimes contra a vida e novas oportunidades para o crime organizado. Se já é assim no caso dos cassinos, ainda mais o é para as bets, que geram muito menos empregos, não atraem turista algum e fazem muito mais estrago nas finanças dos brasileiros, especialmente os mais pobres, como demonstram os dados do Banco Central e da Abmes.

Por isso, como a Gazeta do Povo já afirmou muitas vezes, não é nada desproporcional nem paternalista manter os cassinos proibidos, bem como impor restrições severas às bets. Mesmo os liberais, que têm em grande conta a liberdade individual, hão de reconhecer o dano sistêmico indiscutível que as bets têm provocado, especialmente entre os brasileiros em situação mais vulnerável – é nesses casos de dano sistêmico que muitas vertentes do liberalismo admitem algum grau de intervenção estatal, sempre respeitando-se o princípio da proporcionalidade.

Respeitar a liberdade de escolha não é incompatível com o reconhecimento de que essa mesma liberdade desaparece no vício, e que por isso é fundamental estabelecer uma camada de proteção contra o primeiro impulso que leva alguém a jogar. Os brasileiros são inundados dia e noite com a tentação de ganhos fáceis ao alcance da mão, bastando um celular, com vários incentivos para que um usuário continue jogando; é por isso que mesmo quem considera extrema a proibição total das bets admitiria uma série de outras medidas – por exemplo, restrições à publicidade que fossem no mínimo similares às impostas hoje ao cigarro. As apostas já se transformaram em uma tragédia social que devia ser contida, mas continua sendo ignorada ou mesmo estimulada.

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