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Salvo por alguns poucos e excepcionais momentos, a história política brasileira não nos autoriza a afirmar que tenha sido surpreendente o resultado da votação de ontem no Senado Federal, que absolveu o senador Renan Calheiros da acusação de quebra do decoro parlamentar. Simplesmente manteve-se a regra do corporativismo, da acomodação das conveniências pessoais e da contumaz leniência com que, lamentavelmente, são encaradas as questões éticas e morais que envolvem o exercício da função pública no país.

Dos 81 senadores, 35 votaram pela cassação e 6 se abstiveram, mas um majoritário grupo de 40 decidiu ignorar todas as evidências e todas as provas fáticas e documentais que pesavam contra o presidente da Casa para julgá-lo inocente. Bastaram cinco horas de sessão secreta para que fossem jogados à terra os 110 penosos dias durante os quais foram arrolados e comprovados fortíssimos elementos de convicção para que Calheiros, ao final, fosse exemplarmente condenado.

O resultado, embora em si mesmo absolutamente decepcionante, não pode, porém, ser examinado como fato isolado. Ao contrário, ele faz parte do amplo contexto de lassidão moral entranhada como metástase em todas as esferas do poder constituído do país e que se manifesta das mais variadas formas – dentre as quais as que levaram Renan Calheiros ao cadafalso, caracterizadas por atos explícitos de promiscuidade entre o público e o privado em absoluto detrimento do interesse social.

O caso de Calheiros se assemelha, neste sentido, a uma pústula que emerge na superfície – simples sintoma de que a doença está no sangue e que, pela circulação, ameaça atingir indistintamente todas as células. Esta realidade não ficou patente apenas nos 40 votos que garantiram a absolvição do senador, mas evidenciou-se nas ações e omissões de tantos quantos, por dever funcional e em razão do múnus público que exercem, carregam a obrigação de zelar pela higidez moral da prática política.

É o que se viu pelos seguidos gestos do próprio presidente Lula e de inúmeras personalidades notáveis de seu governo, ora de inconcebível solidariedade, ora de pseudoneutralidade, como se o que se passava não fosse um problema que lhes dissesse respeito. Como se a degeneração ética em curso no Congresso brasileiro não devesse ser vista como uma ameaça geral às instituições democráticas, com perigosas repercussões sobre o estado de espírito de toda a nacionalidade. Ao contrário, embora sua administração esteja indelevelmente marcada pelos mais graves desvios de que se tem notícia na história do país, deve-se ao presidente Lula a estapafúrdia declaração de que seu governo e seu partido são exemplos de irretocável conduta ética.

Tal comportamento não condiz com seus deveres de chefe de Estado. Não lhe é permitido, em nome de uma mal enjambrada interpretação dos princípios de harmonia e independência que devem reger as relações entre os Poderes, dar as costas à defesa dos valores ético-morais que precisam prevalecer em todas as instâncias. Da mesma obrigação devem compartilhar todos os demais representantes dos Poderes republicanos, dentre os quais, claro, os parlamentares que ontem também deram as costas a tais valores para livrar um colega da degola.

É inevitável que a visão que da planície temos da montanha encontre razões para tal pessimismo. Ao mesmo tempo, porém, encontramos motivos para manter a esperança. Em primeiro lugar, porque certamente o infeliz episódio Renan Calheiros produziu lições positivas, na medida em que, se não houve a condenação de seus pares, a opinião pública o fará. É de se imaginar que, de agora em diante, sentindo-se vigiados pela imprensa livre – a mesma que levou o indigitado senador aos seus dias de execração pública –, nossos governantes adotem comportamento mais consentâneo com o nível de moralidade e de responsabilidade que deles se exige.

Outro motivo de otimismo nos foi dado há duas semanas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que, em memorável decisão, acatou as denúncias contra os 40 artífices e beneficiários do esquema do "mensalão". Mostrou-nos o STF que, apesar de tudo, nossas instituições são ainda capazes de resistir e dar combate ao processo de degenerescência que consome nossa vida pública. Uma lição que não deve ser esquecida.

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