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Editorial

Que tipo de paz Trump quer costurar na Ucrânia?  

Trump Ucrânia
Administração Trump tem dado sinais de que aceitaria um acordo de paz em que a Rússia ficasse com os territórios ucranianos invadidos. (Foto: EFE/EPA/Jim lo Scalzo/Pool)

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Quando assumiu seu primeiro mandato, o presidente norte-americano, Donald Trump, colocou no Salão Oval da Casa Branca um busto de Winston Churchill, o primeiro-ministro britânico que derrotou Hitler na Segunda Guerra Mundial. A peça foi retirada por Joe Biden, mas recolocada por Trump em janeiro deste ano, quando iniciou seu segundo mandato. Agora, enquanto lança seus esforços no nobre objetivo de colocar um fim na guerra da Ucrânia e parar o imperialismo do ditador Vladimir Putin, Trump precisa calcular muito bem seus movimentos para não acabar como o antecessor de Churchill, Neville Chamberlain.

Na quinta-feira, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Pete Hegseth, deixou no ar a possibilidade de que um acordo de paz inclua a entrega, à Rússia, dos territórios ucranianos ocupados pelas forças invasoras de Putin. “Apontar para o realismo, como o fato de que as fronteiras não voltarão a ser o que todos gostariam que fossem em 2014, não é uma concessão a Vladimir Putin. É um reconhecimento das realidades do poder duro no terreno”, disse Hegseth após participar de uma reunião de ministros de Defesa de países-membros da Otan, na Bélgica. Na véspera, Trump havia conversado por telefone tanto com Putin quanto com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e dissera que “negociações imediatas” para encerrar a guerra eram iminentes.

A única contrapartida aceitável para a entrega à Rússia dos territórios ucranianos invadidos seria a entrada da Ucrânia na Otan

À primeira vista, a ideia de trocar terras por paz é perigosamente semelhante à “paz para o nosso tempo” com que Chamberlain saudou os Acordos de Berlim, em setembro de 1938, que entregaram a Hitler partes da Tchecoslováquia em troca da promessa nazista de encerrar seu expansionismo. Menos de um ano depois, a Alemanha invadiu a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. Como evitar uma repetição deste cenário, em que o regime agressor consegue o que deseja sem nenhuma garantia concreta de que será contido caso resolva seguir adiante? Felizmente, no caso da Ucrânia existe uma alternativa.

Se é mesmo verdade que “ninguém vai conseguir tudo o que quer”, como disse Hegseth, a única contrapartida aceitável para a entrega à Rússia dos territórios ucranianos invadidos seria a entrada da Ucrânia na Otan – ou seja, a concretização daquilo que Putin dizia querer evitar quando invadiu o país vizinho. A adesão não é garantia completa e absoluta de que a Rússia jamais voltaria a atacar a Ucrânia, mas neste caso o agressor (Putin ou qualquer um de seus sucessores) teria a certeza de que toda a máquina militar da Otan seria acionada de forma legítima, segundo o Direito Internacional, em defesa de um membro da aliança.

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A entrada na Otan protegeria a Ucrânia de forma muito mais efetiva que o Memorando de Budapeste, assinado em 1994 e no qual Kyiv aceitou entregar as armas nucleares que ficaram em seu poder após o fim da União Soviética, em troca da proteção de sua integridade territorial e independência política – ironicamente, um dos “garantidores” dessa proteção era justamente a Rússia. No entanto, um dia antes de sua declaração sobre “o fato de que as fronteiras não voltarão a ser o que todos gostariam que fossem”, o mesmo Hegseth também disse que “os Estados Unidos não acreditam que a adesão da Ucrânia à Otan seja um resultado realista de um acordo negociado”, o que foi confirmado pelo próprio Trump na sexta-feira. Isso levanta algumas dúvidas sobre que tipo de acordo de paz Trump estaria disposto a patrocinar ou incentivar.

O desfecho ideal para a guerra, ninguém há de negar, seria a derrota russa e a restauração da integridade territorial ucraniana – este seria o recado definitivo para qualquer valentão expansionista. Mas, com quase três anos de guerra e destruição, essa perspectiva parece muito distante. Ocorre que, por mais que Hegseth diga o contrário, entregar um único centímetro quadrado de território ucraniano à Rússia já será, sim, uma concessão a Putin. Deixar que isso aconteça é um retrocesso civilizatório tão grande que só se justifica em uma situação extraordinária, e caso a contrapartida seja uma paz sólida e duradoura, e não o mero fim das hostilidades.

Trump caminha agora sobre a finíssima linha que divide o Neville Chamberlain apaziguador ingênuo do Winston Churchill resoluto e vitorioso

O próprio Zelensky já admitiu a possibilidade de entregar a Putin os territórios invadidos, mas condicionou essa concessão à entrada na Otan, e é perfeitamente razoável que ele insista nesse ponto, já que nenhuma outra “garantia” é confiável no momento. Ainda assim, haveria inúmeros pontos a resolver, como um possível pagamento de indenização à Ucrânia pela perda de seus territórios e pelos danos decorrentes da invasão; o deslocamento de ucranianos dessas áreas e que não querem viver sob a ditadura de Putin; e a devolução das crianças ucranianas sequestradas e levadas para a Rússia. Por fim, seria preciso chegar a um acordo que dissuadisse outros valentões expansionistas mundo afora – principalmente a China, já que a Ásia não tem um equivalente da Otan ao qual Taiwan possa se juntar.

Na quarta-feira, Trump disse que pode se encontrar com Putin na Arábia Saudita. “Tudo está na mesa”, disse o vice-presidente J.D. Vance na sexta-feira, em entrevista concedida antes de participar de um evento em Munique – a mesma Munique onde, décadas atrás, as potências europeias acreditaram ter contido Hitler. Trump caminha agora sobre a finíssima linha que divide o Chamberlain apaziguador ingênuo do Churchill resoluto e vitorioso; os termos de um eventual acordo patrocinado pelo norte-americano para encerrar a guerra na Ucrânia definirão qual o paralelo que a história estabelecerá no futuro.

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