O país celebrou nesta semana os 121 anos da abolição da escravatura. A data não é exatamente comemorativa, já que, ao abolir um quadro tão dantesco de sua vida, o país curvava-se às circunstâncias de processo de mudança. A abolição foi proclamada, mas ainda falta a libertação de fato. No 13 de maio voltamos a constatar a pertinaz presença de problemas ainda pendentes, à espera da verdadeira carta de alforria. Os tempos mudaram e a escravidão também alterou aspectos externos, mudou de cenário, mas não de personagens. A canga continua, e até mais pesada, posto que dissimulada. O trabalho escravo, em novo formato, ou repaginado, hoje prolifera principalmente nos campos e minas de carvão, onde pelo menos 25 mil pessoas são exploradas.
A escravidão contemporânea, como a Gazeta demonstrou na quarta-feira, é perpetrada na pecuária, agricultura e minas de carvão, conforme relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Essa projeção, no entanto, pode estar bem longe da realidade. Nos últimos 14 anos, o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho resgatou 33.253 pessoas que estavam privadas da liberdade e submetidas a serviços forçados.
Os escravos do Brasil fazem parte de uma grande senzala, a senzala global. São 12,3 milhões as vítimas do trabalho forçado no mundo, ainda segundo a OIT. Não se trata de uma nódoa infamante exclusiva das nações pobres. Nos países ricos eles são mais rentáveis. Enquanto na Ásia e no Pacífico os rendimentos com a atividade forçada de 9,5 milhões de pessoas chegam a US$ 9,7 bilhões, os 360 mil escravos da Europa e dos Estados Unidos rendem US$ 15,5 bilhões aos exploradores. Mulheres e meninas respondem por 56% dessa mão de obra forçada.
E a crise financeira que atinge os mercados desde o ano passado põe em risco estratégias de redução e combate a tal prática. O alerta está contido no relatório O Custo da Coerção, também da OIT. Em tempos de crise, as consequências costumam atingir os mais vulneráveis, o que pode afetar direitos trabalhistas e coagir trabalhadores a aceitar condições ilegais para preservar seus empregos. Assim, mais do que nunca é preciso impedir que "as adaptações se façam à custa das salvaguardas conquistadas arduamente para impedir que os trabalhadores ao longo das cadeias produtivas sejam submetidos a trabalho forçado ou ao abuso representado pelo tráfico de pessoas". Ainda segundo a organização, alguns dos melhores planos de ação contra a exploração do trabalho estão na América Latina, inclusive no Brasil, que é citado como país "com longa experiência e história oficial de compromisso de luta contra o trabalho forçado".
Por ocasião das comemorações dos 200 anos da vinda da Família Real, o historiador e diplomata Alberto da Costa e Silva lembrava que a escravidão americana era especialmente perversa por ser a única racial. A partir do século 17, só os negros eram escravos no Brasil, ao passo que no resto do mundo qualquer pessoa poderia ser escrava, se fosse prisioneira de guerra ou condenada judicialmente. Há outras lições que devem ser lembradas permanentemente. À época da chegada de dom João, "toda a vida econômica do Brasil estava baseada em escravos", daí ele apontar o escravo como "o verdadeiro herói nacional brasileiro". Outro ponto: "Achava-se a coisa mais natural do mundo comercializar escravo, como hoje se acha natural a uma empresa demitir 200 pessoas para ajustar seus custos".
A prevalência do trabalho assalariado é recente na história, datando da metade do século 19. Até então, o grosso do trabalho no mundo era escravo ou servil. Avançamos muito, mas ainda não é o bastante.



