A PEC dos Precatórios já nasceu torta. Nada mais é que a tentativa de legalizar um calote, prejudicando inúmeros brasileiros, pessoas físicas e jurídicas, que já tiveram reconhecido pela Justiça, com trânsito em julgado, o seu direito de reaver quantias que o poder público lhes tirou indevidamente – dinheiro que poderia ter feito muita diferença no passado, e ainda pode fazer muita diferença no futuro. E tudo porque o governo é incapaz de abrir espaço no orçamento para cumprir tais obrigações, sendo “forçado” (sempre entre aspas) a postergá-las. E o que surge viciado dificilmente acaba consertado enquanto tramita pelas casas do Congresso Nacional – é muito mais fácil que acabe ainda pior.
Foi assim que a PEC recebeu a adição da nova regra de cálculo do teto de gastos, que muda o intervalo de 12 meses dentro do qual se faz o cálculo da inflação para se chegar ao índice de reajuste do gasto público global. Trata-se de um truque desenhado sob medida nestes tempos de inflação acelerada para dar ao governo a chance de gastar algumas dezenas de bilhões a mais em 2022 sem ter de furar normalmente o teto instituído em 2016 como ferramenta muito importante de controle fiscal. Mas, se já era absurdo usar a dupla folga concedida pela PEC – tanto no volume de precatórios que não serão pagos quanto na nova fórmula de reajuste do teto de gastos – em uma finalidade decente, como o socorro aos brasileiros mais pobres por meio do Auxílio Brasil, congressistas estão dedicados a aproveitar a chance de gastar mais em finalidades bem menos nobres.
O governo sugeriu um calote no pagamento de suas obrigações e adicionou uma gambiarra fiscal para que, no fim, o brasileiro financie também duas imoralidades que nem deveriam existir
O espaço total aberto com a PEC seria de R$ 83 bilhões, mas nem todo esse dinheiro será necessário para o Auxílio Brasil, que consumiria cerca de R$ 50 bilhões caso seja pago o benefício médio de R$ 400. Parte do gasto adicional, segundo documento obtido pelo jornal Valor Econômico e que circula entre deputados e senadores, seria destinado ao fundo eleitoral, aumentando-o de já acintosos R$ 2 bilhões para ainda mais inacreditáveis R$ 5 bilhões. Caso a folga seja ainda maior – e há estimativas na casa dos R$ 95 bilhões –, sobraria dinheiro para turbinar em R$ 16 bilhões as emendas de relator no orçamento de 2022.
Em outras palavras, o governo sugeriu um calote no pagamento de suas obrigações e adicionou uma gambiarra fiscal para que, no fim, o brasileiro financie também duas imoralidades que nem deveriam existir. O fundo eleitoral é um escárnio pois campanhas e partidos políticos deveriam ser bancados apenas por filiados e simpatizantes, e não pelo contribuinte. E as emendas de relator foram a maneira encontrada pelo Congresso em 2019 para saciar a gula de parlamentares e reabrir o balcão de barganha política que havia sido fechado quando as demais emendas (individuais, de bancada e de comissão) se tornaram de execução obrigatória.
Felizmente, as resistências à PEC dos Precatórios têm se avolumado, a ponto de o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ter evitado votar o projeto nos últimos dias, chegando a retirá-lo de pauta em sessões nas quais sua votação estava programada. Ainda está recente na memória de Lira a derrota da PEC 5, que alterava o Conselho Nacional do Ministério Público e cuja aprovação o presidente da Câmara chegou a dar como favas contadas, para no fim descobrir que faltaram 11 deputados para completar os 308 votos necessários. Uma repetição desse episódio seria muito bem-vinda. O dinheiro que o Estado tomou indevidamente dos brasileiros merece estar de volta à sua mão, para que eles invistam, poupem ou consumam como bem entenderem. E que o governo busque outros meios de viabilizar o necessário auxílio aos mais pobres, sem com isso patrocinar truques que, como se vê agora, acabarão usados em benefício próprio de políticos inescrupulosos.
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