
No fim da semana passada, a primeira-ministra italiana, a conservadora Giorgia Meloni, apresentou uma ideia que contempla exatamente aquela que é, hoje, a maior preocupação dos ucranianos caso consigam um acordo de paz que encerre a guerra provocada três anos atrás pela Rússia: que os países europeus estendam à Ucrânia as mesmas garantias previstas hoje no artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte. O texto afirma que um ataque armado contra um dos países-membros da Otan equivale a uma agressão contra todos eles, que ficam obrigados a intervir, militarmente se necessário, em defesa do país atacado. “É algo diferente de entrar na Otan, mas implica estender a cobertura que os países da Otan têm também para a Ucrânia”, explicou a premiê.
Mesmo compreendendo a preocupação de quem considere arriscada a medida, como se fosse uma provocação à Rússia, é preciso destacar a ressalva feita por Meloni: não se trata de uma adesão da Ucrânia à Otan. A proposta da premiê italiana é a de um acordo fora do âmbito da aliança militar, que aplique à Ucrânia apenas o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte, que por sua vez é explícito quanto ao seu caráter defensivo, jamais ofensivo – como, aliás, é a própria natureza da Otan, cujo objetivo é o de defesa mútua, e não o de constituir uma “superforça” agressora internacional. O artigo 5.º só é invocado em caso de “um ataque armado contra um ou mais [Estados]”, ou seja, é inútil caso a agressão seja iniciada por um dos signatários do acordo contra alguém que está de fora. Se o acordo entre a Ucrânia e os outros países europeus fosse assinado, Volodymyr Zelensky não poderia, por exemplo, atacar a Rússia e pedir ajuda caso Moscou reagisse invadindo o território ucraniano.
A proposta de Giorgia Meloni significa uma recuperação do protagonismo europeu em questões de defesa
A ideia é boa não apenas por oferecer à Ucrânia uma garantia de que ela necessita desesperadamente, mas também porque, diante de sinais de uma agressividade cada vez maior vinda da Rússia do ditador Vladimir Putin, a proposta de Meloni significa uma recuperação do protagonismo europeu em questões de defesa. Que os líderes do continente estejam acordando para a necessidade de tomarem a segurança da Europa em suas próprias mãos é o único efeito colateral positivo, até o momento, da maneira com que Donald Trump vem lidando com a guerra na Ucrânia.
Era natural que os Estados Unidos se encarregassem de garantir a defesa da Europa Ocidental após o fim da Segunda Guerra Mundial. Enquanto os EUA ascendiam como superpotência econômica e militar, os europeus precisavam reconstruir – literalmente – suas nações, e o surgimento da Otan, em 1949, foi uma forma de garantir que a outra superpotência, a União Soviética, não tentasse colocar novos territórios europeus em sua esfera de dominação. No entanto, como já afirmou o eurodeputado conservador Nicolás Pascual de la Parte, ex-embaixador espanhol junto à Otan, os países europeus ficaram mal-acostumados, terceirizando sua defesa para os EUA enquanto, tendo recuperado suas economias, investiam fortemente em um robusto Estado de bem-estar social.
O arranjo – que pelo menos garantia a influência de Washington sobre a Europa Ocidental – durou até que o contribuinte norte-americano passasse a se ressentir cada vez mais do fato de, na prática, estar subsidiando para os europeus a saúde e a educação gratuitas, ou a aposentadoria generosa, que o cidadão dos Estados Unidos não tinha em seu próprio país. No ano passado, os EUA bancaram 68% de toda a despesa da Otan. Trump tem cobrado os países europeus para que gastem ao menos 5% do PIB com defesa, bem mais que a meta de 2% acertada pela Otan em 2014, mas ainda assim seria menos que os 6% que a Rússia deve gastar este ano. Os EUA não chegam a esse nível – desde o fim da Guerra Fria, jamais gastaram mais que 4,9% do PIB com defesa, segundo o Banco Mundial –, mas já têm uma máquina de guerra bastante desenvolvida.
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Isso não quer dizer que o poderio militar europeu esteja às traças. A Europa tem duas potências nucleares – França e Reino Unido – e empresas do ramo militar que estão entre as mais desenvolvidas do mundo em sua área. Caso a ideia de Giorgia Meloni se torne realidade, a Europa já teria um poder de dissuasão bastante razoável, mesmo que os Estados Unidos resolvessem ficar de fora do acordo. E, ainda que por vias muitíssimo tortas, o chacoalhão começou a fazer efeito, especialmente na Alemanha, onde a centro-direita, vencedora das últimas eleições, está costurando com a centro-esquerda uma flexibilização das regras orçamentárias para permitir mais gastos com defesa. A União Europeia está em vias de adotar medida semelhante.
Um rearmamento europeu pode trazer memórias de corridas armamentistas do passado que terminaram em conflitos mundiais. Mas, no momento, não parece haver outra alternativa para um continente que, a leste, vê um ditador e criminoso de guerra dando vazão a impulsos expansionistas e, a oeste, um país que pende novamente para o isolacionismo em detrimento da ordem internacional que garantiu a paz na Europa por várias décadas (com a exceção, talvez, do conflito étnico-político após a dissolução da Iugoslávia, nos anos 90). Fortalecer-se militarmente para apoiar a Ucrânia e garantir o socorro de praticamente todo o continente em caso de nova agressão, sem depender dos humores de Washington, é hoje a melhor chance de frear Putin.



