
O primeiro dia útil após a entrada em vigor de parte das novas medidas protecionistas aprovadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, incidentes sobre as importações oriundas de mais de 100 países (outra parte passa a valer a partir de quarta-feira), foi marcado por quedas generalizadas nas bolsas de valores – inclusive as norte-americanas. No momento, o cenário ainda é de muita confusão e investidores não têm clareza alguma a respeito dos possíveis desfechos do “tarifaço”, havendo quem tema uma guerra comercial global e até mesmo recessão. A bem da verdade, sabe-se pouco até mesmo sobre qual o verdadeiro objetivo de Trump – forçar uma abertura comercial em outros países, revitalizar a indústria do país, ou um pouco de ambos –, e se o caminho escolhido por ele o levará a conseguir o que deseja.
Do ponto de vista teórico, é difícil entender o “tarifaço” de Trump sem conhecer os detalhes do Acordo Mar-a-Lago, idealizado pelo Conselho de Consultores Econômicos da Casa Branca (CCE), sob liderança do economista Stephen Miran, que traz um conjunto de princípios sobre a reforma da ordem financeira mundial e a recuperação da indústria norte-americana. O Acordo Mar-a-Lago é rico em informações e foi resumido em um documento tornado público sob o título de A User’s Guide to Restructuring the Global Trading System – Executive Summary, com 41 páginas detalhando aspectos teóricos, princípios e medidas defendidas por Miran, considerado o principal conselheiro do presidente Trump e defensor rigoroso da recuperação industrial do país.
O documento afirma que o atual governo deve buscar reformar o sistema de comércio global e colocar a indústria norte-americana em terreno mais justo em relação ao resto do mundo, principalmente porque o mundo está à beira de uma grande mudança geracional no comércio internacional e nos sistemas financeiros. Um dos pontos mencionados representa outro pilar da política econômica para o comércio internacional: trata de desequilíbrios econômicos causados pela política de desvalorização da moeda nacional frente ao dólar, feita por grandes países, medida que resulta na supervalorização da moeda norte-americana e, assim, interfere no equilíbrio do comércio internacional em prejuízo dos EUA. O documento ressalta também que o governo Trump deveria implementar as tarifas de forma interligada com estratégia de segurança nacional, além de levar em conta o contexto do sistema tributário do país.
Para Trump, os EUA têm sido prejudicados por nações parceiras que impõem tarifas contra importações de produtos norte-americanos enquanto inundam os Estados Unidos com suas exportações sem tarifas, ou com tarifas muito inferiores
Este conjunto de medidas deve ser analisado considerando aspectos constitutivos do que se entende por livre comércio, expressão essa que passou a ser aplicada às relações internacionais sob a ideia de que as nações devem ser livres para realizar trocas comerciais entre si. De saída, acredita-se que o livre comércio somente deve ser praticado por uma nação desde que as demais nações adotem princípios e regras similares, pois seu funcionamento em um país é condicionado a que as nações parceiras não recorram ao protecionismo em forma de barreiras tributárias, alfandegárias e sanitárias com elevado grau de diferença. Neste ponto reside o principal argumento do governo Trump, para quem seu país tem sido prejudicado por nações parceiras que impõem tarifas contra importações de produtos norte-americanos enquanto inundam os Estados Unidos com suas exportações sem tarifas, ou com tarifas muito inferiores àquelas que praticam nas importações oriundas dos EUA.
Um exemplo ilustrativo para a compreensão das razões do governo Trump para o “tarifaço” é a cidade de Detroit, antes uma grande e imponente região que se tornou rica graças ao grande parque industrial de automóveis. A partir dos anos 1980, a concorrência de carros japoneses, menores e mais econômicos, tomou mercado da indústria nacional, as vendas de veículos nacionais caíram e as mudanças foram tão drásticas que Detroit definhou por longos anos até atingir um grau de falência tão grandioso que a cidade praticamente acabou e se tornou um símbolo de cidade-fantasma, totalmente destruída. Desde sua primeira campanha eleitoral, em 2016, Trump tomou as dores do trabalhador da indústria norte-americana, discurso que, naquele ano e em 2024, lhe valeu a vitória nos estados do “Rust Belt”, estados marcados pelo declínio de sua indústria e que, até 2016, sempre haviam votado nos democratas.
O princípio que norteia o pacote de tarifas é a “política de reciprocidade”: trata-se de elevar as tarifas sobre produtos importados pelos EUA, com a justificativa de que as nações que importam bens e serviços norte-americanos já exercem tributação sobre tais produtos e, assim, criam condições desiguais desvantajosas para os EUA. Países que aplicam tarifas elevadas para importações oriundas dos EUA receberam tarifas mais elevadas que os países que cobram tarifas menores quando compram produtos norte-americanos. A nova taxa tarifária aprovada para cada país levou em conta a tarifa que, segundo Trump, o país parceiro dos EUA cobra nas importações de produtos norte-americanos. A China, por exemplo, cobra tarifa geral de 67% em suas importações dos Estados Unidos, de acordo com o presidente norte-americano, e por isso os produtos chineses importados pelos EUA serão taxados na média em 34%. Para o Brasil, foi aplicada uma tarifa geral de 10% para importações de produtos brasileiros, pois a tabela divulgada registra que a tarifa cobrada pelo Brasil nas importações oriundas dos EUA é também de 10%.
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Inicialmente, as principais medidas aplicadas por um país sobre seu comércio exterior se resumem a três: tarifas sobre os valores dos bens e serviços importados; barreiras não tarifárias, como controle de qualidade e exigência de práticas ambientais e sanitárias; e desvalorização da moeda nacional frente as moedas estrangeiras, especialmente em relação ao dólar. A escolha norte-americana foi pelo aumento nas tarifas sobre importações, que são impostos pagos pelos norte-americanos na compra de produtos estrangeiros. De forma simplificada, a principal razão para impor ou elevar as tarifas sobre importações é tornar o produto importado mais caro, a fim de que os produtores nacionais elevem sua capacidade de competir com o produto importado. Por lógica, os consumidores nacionais diminuem suas compras de produtos importados, por estes terem ficado mais caros, e passam a adquirir o produto nacional mais barato em termos comparativos.
Se o objetivo principal de Trump é aumentar a demanda por produtos nacionais e recuperar o parque industrial norte-americano via aumento de investimentos, produção e emprego, as tarifas atingiriam esse objetivo reduzindo as importações e melhorando a balança comercial dos EUA com o resto do mundo. No entanto, se são realmente esses os planos do governante norte-americano, eles entram em aparente conflito com afirmações do Tesouro dos Estados Unidos e de secretários de Trump, para quem os EUA terão um aumento sem precedentes na arrecadação, o que permitiria a redução de alguns impostos internos, ajudando a enfrentar eventual aumento da inflação em razão do encarecimento das importações gravadas com tarifas maiores. No entanto, isso pressupõe que os EUA sigam importando produtos e serviços em níveis parecidos aos atuais, o que manteria o nível atual de oferta, embora a preços um pouco mais elevados, e não necessariamente significaria vantagem para o produtor nacional.
À medida que as novas medidas começarem a ser aplicadas, vários países iniciarão negociações para tentar redução nas tarifas que julgarem prejudiciais a suas economias internas. O mundo está diante de mudanças profundas e a abertura de negociações para que o governo Trump faça concessões pode levar a modificações nas regras inicialmente aprovadas e anunciadas. Porém, o fato é que dificilmente o comércio internacional voltará a um ponto anterior ao pacote baixado pelos EUA. Como será a nova configuração global, somente o tempo dirá.



