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Editorial

A independência necessária dos órgãos de estatísticas

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O Indec, da Argentina, é um dos casos mais extremos de manipulação de dados econômicos por pressão política do governo, entre 2007 e 2016. (Foto: Matías Gabriel Napoli/EFE)

Certos governos têm sérios problemas com estatísticas e com os responsáveis por sua elaboração, quando os números não saem a contento. A Argentina sob os governos de esquerda do casal Kirchner é um caso bastante emblemático. Em 2007, quando o presidente era Néstor Kirchner, o governo decretou uma intervenção no Indec, o órgão nacional de estatísticas, e iniciou um verdadeiro expurgo, com centenas de técnicos sendo demitidos ou levados a pedir demissão. No fim daquele mesmo ano, a primeira-dama Cristina Kirchner assumiu a presidência, substituindo o marido, e deu sequência a políticas economicamente desastrosas, que fizeram a inflação disparar. Mas o Indec maquiava tudo.

A manipulação de estatísticas chegou a tal ponto que, em 2012, a célebre revista britânica The Economist parou de publicar os dados oficiais da economia argentina, substituindo-os por números independentes – e os pesquisadores responsáveis por índices de inflação mais confiáveis eram perseguidos dentro do país, com direito a ameaças de prisão. Só em 2016, com o liberal Maurício Macri na presidência, o Indec voltou aos trilhos, e a Economist voltaria a publicar os dados oficiais argentinos no ano seguinte. Nesse meio tempo, a Argentina viveu falta de credibilidade internacional e caos interno – como nas disputas pelo índice a ser usado para correções salariais.

Nem a manipulação, nem a pressão política para que os órgãos oficiais de estatísticas apresentem bons números condizem com boas práticas de governança

No Brasil, em meados de 2023, Lula obrigou a ministra do Planejamento, Simone Tebet, a engolir a nomeação de Márcio Pochmann, um ideólogo radical de esquerda, para o IBGE – que está subordinado à pasta da ministra. Pochmann havia tido uma passagem desastrosa por outro órgão, o Ipea, entre 2007 e 2012 (cobrindo o segundo mandato de Lula e o primeiro de Dilma Rousseff), com acusações de perseguição ideológica a técnicos não alinhados com a esquerda, e divulgação seletiva de estudos. Embora até o momento não tenha havido ainda nenhuma denúncia a respeito de fraude em dados – o IBGE divulga números bastante importantes para a economia, como os dados de inflação e desemprego –, sua gestão tem sido marcada por atritos com funcionários, inclusive em relação ao estabelecimento de um “IBGE paralelo”; críticas ao modelo de divulgação dos dados; e factoides sem pé nem cabeça como o mapa-múndi invertido.

A credibilidade dos números é importante para um país, pois é com base neles que governantes, investidores e cidadãos comuns tomam todo tipo de decisões a respeito do que fazer com seus recursos. Mas a credibilidade não depende apenas de os números de fato refletirem a realidade; depende também de os responsáveis por apurar e tabular os dados poderem trabalhar com liberdade. Nem a manipulação, nem a pressão política para que os órgãos oficiais de estatísticas apresentem bons números condizem com as boas práticas de governança esperadas em um campo tão importante.

Por isso mesmo, quem viu com horror a manipulação de dados realizada pela esquerda kirchnerista na Argentina, e quem teme – com toda a razão – a possibilidade de algo semelhante acontecer no Brasil de Lula e Márcio Pochmann também precisa enxergar com preocupação um caso semelhante, vindo do norte. Na sexta-feira passada, o presidente norte-americano, Donald Trump, demitiu Erika McEntarfer, comissária do Departamento de Estatísticas sobre Trabalho (BLS, na sigla em inglês), poucas horas depois da divulgação de um dado mais fraco sobre geração de empregos em junho, o chamado payroll. Nas mídias sociais, Trump alegou que McEntarfer tinha sido indicada por Joe Biden – como se esse fato já não fosse conhecido desde antes de Trump ser empossado – e a acusou, sem provas, de manipular os números de emprego de 2024 para beneficiar Kamala Harris na disputa pela Casa Branca.

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“Números importantes como esses devem ser justos e precisos; não podem ser manipulados para fins políticos”, disse Trump na mesma ocasião. É exatamente esse o ponto, mas não só isso: se McEntarfer se manteve no cargo por um semestre inteiro de gestão Trump, enquanto os números divulgados eram bons, e o perdeu agora, quando os dados já não foram tão alvissareiros, quem pode garantir que seu substituto trabalhará com independência? Se o payroll de agosto for bom, é realmente possível criticar quem pergunte se o mercado de trabalho realmente se recuperou, ou se o novo comissário do BLS está tentando agradar o chefe para não perder a cabeça também? Não será essa uma dúvida legítima, diante dos últimos acontecimentos?

Ciente ou não disso, Trump fez muito mais que McEntarfer para tirar credibilidade dos números de emprego norte-americanos, a não ser que haja de fato evidências avassaladoras de manipulação real de dados em 2024 e nos últimos meses, evidências essas que por enquanto não vieram a público. Sem isso, continua valendo a sabedoria milenar: “Matar o mensageiro” tem sido péssima política pública desde a Antiguidade, e não deixou de sê-lo na atualidade, independentemente da coloração político-ideológica de quem se irrita com números pouco auspiciosos. Se de agora em diante os dados de emprego forem vistos com desconfiança nos Estados Unidos, Trump só pode culpar a si mesmo.

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