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Editorial

O sol enganador

Suspeita de exploração de trabalho infantil rouba o brilho de evento cultural e social que projetou o Paraná. Falta de tato em tratar do assunto trouxe prejuízos a todos os envolvidos – incluindo o público que há 21 anos sonha olhando para as janelas do Palácio Avenida

O Natal chegou mais cedo para os paranaenses neste ano. Tocados pelo noticiário, milhares devem ter se posto a lembrar das apresentações do Coral HSBC, quiçá das crianças cantando Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel, o clássico melancólico de Assis Valente, peça obrigatória no repertório de fim de ano do Palácio Avenida. Podem ter se emocionado com essa lembrança, quase tão habitual à gente da terra quanto a vista romântica da Serra do Mar. E se perguntado por que não se deram conta antes de que o que estavam vendo não era expressão da beleza, mas uma atroz exploração de trabalho infantil em prol do marketing de uma grande corporação.

Houve quem desse resposta imediata à súbita revelação – escrevendo para os jornais dizendo que não, não identifica no grupo de criancinhas abrindo graciosamente as janelas do Palácio Avenida nenhum golpe da malvada Cruela ou de qualquer outra vilã das fábulas infantis. Essa foi a voz do povo, expressa nas redes sociais e nas conversas de esquina, negando-se a fazer coro com o que julgou um descalabro, uma cegueira diante de problemas reais, sem luzes ou astros da tevê, disponíveis todos os dias em roda dos sinaleiros.

Nos bastidores da rede de proteção à infância, o assunto tem sido tratado entredentes e entrededos. Nessas divisas, a proteção integral à infância e à adolescência tem status sagrado e ninguém, em sã consciência, se arvoraria a atirar pedras contra a investigação do Ministério Público do Trabalho e do Ministério do Trabalho e do Emprego – ficar de olho em qualquer atividade que envolva crianças para impedir excessos é mais que louvável. A investigação contra a promoção da HSBC, entende-se, é assunto da hora, merece debate, mas, idem, não sem constrangimento, pois coloca a sociedade diante de um projeto que soma 21 anos, consagrado como uma ação empresarial em prol da infância, e não contra ela. Assim nos acostumamos a repetir, ficando todos agora com cara de bobos.

O silêncio foi quebrado pela Pastoral da Criança, que deu a cara a bater, dizendo não ver no trabalho do coral nada que o desabone. Além do mais, tudo indica que o HSBC se mostra conhecedor do Estatuto da Criança e do Adolescente, flexível para rediscutir e redirecionar seu projeto, no melhor do espírito artístico – o show tem de continuar. O banco até já se comprometeu a fazer pequenos ajustes naquilo que foi percebido como problema. É provável que a ação se resolva, mas não sem prejuízos para o setor privado, inibindo ainda mais sua já tímida disposição em se envolver com cultura e promoção social.

No frigir dos ovos, tanto barulho acabou levantando mais de uma suspeita. Para além da suposta mão pesada da direção artística do coral contra os pequenos cantores, pode-se dizer que impera um preconceito atroz contra a iniciativa privada, sujeita a uma desconfiança soviética contra todo e qualquer setor em que circule o capital. Empresas seriam uma espécie de assassinos por natureza, das quais não se pode descuidar. Resta saber se essa prevenção seria maior no Ministério Público e no setor do Trabalho, ou se no coração do movimento social, esquizofrenicamente desejoso, desconfiado e ressentido das parcerias que tanto campeia, tudo ao mesmo tempo agora.

De todos os lados que se olhe a questão, só se vê prejuízos. Desse debate desenfreado saíram maculados o coral e a empresa que o promove; os órgãos oficiais, que deixaram, talvez por azar, a impressão de que não conseguem perceber devidamente o problema da infância no Brasil. Perdeu o público, agora entregue ao fio da suspeita. Caso as janelas se abram novamente, não vão procurar a alegria que sempre julgaram saltar aos olhos dos pequenos cantores, mas a tristeza de estar ali, debaixo dos algozes. Como a imaginação é a alma do negócio, o Coral HSBC corre o risco de ser classificado como um dos causadores do mal-estar da civilização, um sol enganador. Tempos difíceis esses.

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