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Editorial 1

Pacto de sangue

A Gazeta do Povo publicou neste domingo a reportagem "Silêncio: HIV", resultado de uma pequena imersão no Hospital Oswaldo Cruz, em Curitiba, especializado no tratamento de soropositivos. O foco da matéria são os profissionais de saúde que trabalham em silêncio no tratamento da enfermidade mais estigmatizada desde a tuberculose e a sífilis. Muito mais, aliás.

Apesar de todas as evidências em contrário e das provas numéricas, não poucos ainda veem a aids como uma doença de homossexuais e a tratam como um saldo da promiscuidade, o que serve de porta entreaberta para toda a sorte de preconceitos e hipocrisias. É fato que inúmeras campanhas – ao longo dos 30 anos em que a síndrome é conhecida – se ocuparam de dirimir essas mentalidades. Mas não foram suficientes. Eis a questão.

A maior queixa dos profissionais do Oswaldo Cruz é que, depois de verdadeiros mutirões de conscientização popular em décadas passadas, as campanhas antiaids acabaram se limitando ao carnaval. Ou seja, desaparecem na Quarta-Feira de Cinzas, ao som do último alalaô. Embora danosa, essa ausência de discursos contínuos na prevenção da doença é compreensível. E é a partir dessa compreensão que se pode repropor uma política mais agressiva de prevenção. Às falas.

Formou-se uma estrutura em torno dos contaminados. Há secretarias especiais, ONGs e programas de fino-trato, acompanhados por profissionais preparados. Como diz a diretora clínica do Hospital Oswaldo Cruz, a infectologista e pioneira Rosana de Camargo, "ninguém trabalha com pacientes de aids se não tiver um grande amor à causa e desejo de conhecimento".

Palmas para todos o modelo de atendimento aos contaminados, copiado e elogiado em todo o mundo, teria amainado a necessidade de campanhas mais ostensivas.

Outro agravante está na própria cultura noticiosa da mídia. A aids passou a ser um fato velho, um assunto para o dia mundial, em 1.º de dezembro, quando as estatísticas saem das gavetas e, com sorte, ganham alguma manchete. Nada que se diga sobre a enfermidade parece arregalar os olhos do leitor, nem mesmo o fato mais fresco – o de que dependentes químicos de crack se converteram em grupo de risco.

Não se trata de frieza da imprensa, mas de uma contingência: a aids se tornou uma doença crônica, controlada por coquetéis de última geração e com mortalidade em queda. Vez ou outra alguma nova aferição quebra a rotina e coloca o assunto na berlinda, mas o impacto é menor do que o de uma matéria sobre a queda de cabelos.

Vale pensar em duas informações recentes publicadas nos jornais: a de que os soropositivos morrem mais do coração do que de doenças oportunistas; e de que 20% das mortes por aids não têm diagnóstico. A primeira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é quase uma boa notícia: os tratamentos são tão bons que a chance de "morrer de aids" como se dizia é menor do que a de "morrer atropelado". A segunda, levantada pela Fiocruz, aponta para um comportamento: a realização do teste é tímida como uma normalista da era Vargas. Ora, essa última informação bem poderia ter gerado um barulho de trombone.

Repetindo o que disse, um dia, o médico Nizan Pereira, do Hospital de Clínicas, uma geração inteira "não viu a cara da aids". Uma vez transformada em drama invisível, diminuem os cuidados, principalmente entre os mais jovens. Daí não fazer testes. E todo o resto. Sendo esse o diagnóstico, nada mais resta fazer do que manter o assunto em alta, usando para isso de criatividade. Do contrário, o público pode ligar o pause e continuar pensando que não é com ele ou que já sabe o bastante.

Resolvido o impasse? Não. Como desde o princípio, em se tratando do HIV, nada é simples como parece. As grandes campanhas até podem ter se tornado menos incisivas, mas não as pequenas e médias, mantidas heroicamente por gente que não solta o arreio. É o caso do programa Adolescente Saudável, da Secretaria de Saúde de Curitiba, a cargo da ebiatra Júlia Cordellini, entre outras ações. Essas iniciativas operam em redes subterrâneas. Correm feito metrô. O mesmo se diga dos projetos contínuos das ONGs que formam a Aliança Paranaense pela Cidadania LGBT. Não há intervalo para o lanche.

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