
Este conteúdo foi atualizado
O vídeo do youtuber Felipe Bressanim, conhecido como Felca, fez o Congresso Nacional tirar da gaveta o PL 2.628/22, proposto três anos atrás e aprovado no Senado em 2024. As graves denúncias do influenciador sobre a “adultização” de crianças e adolescentes nos ambientes virtuais ganharam dimensão inédita – episódios semelhantes já haviam sido denunciados antes, mas sem a mesma repercussão e com resultado nulo – e levaram o presidente da Câmara, Hugo Motta, a acelerar a tramitação do projeto na casa. Na terça-feira, aprovou-se em votação simbólica o caráter de urgência da proposta, que passou pelo plenário nesta quarta-feira e, agora, volta ao Senado. O texto, no entanto, traz camuflada, entre as boas intenções, uma porta escancarada para a censura.
Um dos raríssimos consensos que há no Brasil quando o assunto é a regulação das mídias sociais é a necessidade de ação mais proativa das Big Techs na proteção da imagem de crianças e adolescentes e na prevenção de sua exposição a conteúdos prejudiciais a seu desenvolvimento psicológico e socioafetivo. Pornografia infantil e outros crimes contra a infância e a adolescência são casos típicos em que o modelo de “dever de cuidado”, aquele em que o provedor retira conteúdos do ar por conta própria, dispensando até a necessidade de notificação ou denúncia, pode e deve ser aplicado. São casos óbvios, que poderiam ser identificados até mesmo com a ajuda de inteligência artificial; as raríssimas situações de remoção indevida (por exemplo, o compartilhamento de imagens de crianças com fins de pesquisa médica) poderiam ser resolvidas individualmente, e o eventual prejuízo é ínfimo em comparação com o benefício da ação rápida dos provedores.
Um órgão do Poder Executivo ou vinculado a ele ganhará o poder de censurar uma rede social inteira se julgar que ela não está agindo para proteger crianças e adolescentes. Mas com que critérios fará essa avaliação?
E é preciso reconhecer que o PL 2.628, agora apelidado “PL da Adultização” devido ao vídeo de Felca, age neste sentido e em muitos outros, buscando a proteção da infância e da adolescência. Entre outras medidas, ele impõe às empresas de tecnologia várias medidas que evitem a exposição de crianças a vários conteúdos, inclusive pornografia; obriga a adoção de mecanismos de controle parental, inclusive para monitoramento de interações entre as crianças e outros adultos; e proíbe “armadilhas” que levem crianças e adolescentes a se tornarem dependentes de certos produtos on-line, como jogos. Tudo isso sem prescindir da autoridade familiar, afirmando que o texto legal “não exime os pais e responsáveis (...) de atuarem para impedir sua [das crianças e adolescentes] exposição às situações violadoras”.
Destaque-se, também, que pela primeira vez o Congresso está perto de aprovar uma lei que obrigue as Big Techs a ser transparentes nos casos de remoção de conteúdo, informando ao usuário qual publicação sua foi removida, por que motivos, e dando-lhe possibilidade de apresentar contestação. Os provedores tradicionalmente têm sido refratários a qualquer tipo de transparência neste sentido, removendo publicações e suspendendo contas sem dar explicação alguma, agindo como editores enquanto alegam ser meros intermediários para a transmissão de conteúdos, sem aceitar sujeitar-se à responsabilização jurídica que suas políticas de moderação deveriam ensejar.
Mas os benefícios terminam aí, e o pulo do gato é suficientemente grave para ofuscar tudo o que o PL 2.628 tenha de positivo. A esquerda tem se mobilizado pela aprovação do texto, mas a proteção de crianças e adolescentes contra a “adultização” (e, mais especificamente, a erotização) nunca foi uma preocupação sua – muito pelo contrário. A possível explicação está em um dispositivo introduzido no PL a pedido do governo federal, como diz o próprio relator da proposta na Câmara, deputado Jadyel Alencar. O texto introduz a figura de uma “autoridade nacional” não identificada, que “ficará responsável por fiscalizar o cumprimento desta lei em todo o território nacional e poderá editar normas complementares para regulamentar os dispositivos. Tal autoridade poderá até mesmo suspender temporariamente ou tirar do ar uma rede social “em caso de descumprimento das obrigações previstas nesta lei”. Em uma concessão de última hora feita pelos governistas, a Câmara alterou o PL para que a a “autoridade nacional” será criada por lei e seus membros sabatinados pelo Senado, mas os superpoderes foram mantidos.
VEJA TAMBÉM:
Em outras palavras, um órgão do Poder Executivo ou vinculado a ele ganha o poder de censurar uma rede social inteira se julgar que ela não está agindo para proteger crianças e adolescentes. Mas com que critérios fará essa avaliação? O que será preciso para uma punição desse tipo? Um caso de grande comoção nacional há de bastar? Ninguém sabe, porque a lei não tem uma palavra sobre o assunto. E, ainda que tivesse, trata-se do tipo de decisão que, na muito mais benigna das hipóteses, deveria caber apenas ao Judiciário, por questão de princípio – ainda que o atual Judiciário esteja longe dos padrões mínimos de respeito à liberdade de expressão e ao devido processo legal. A mera possibilidade de um ente da administração pública poder tirar do ar um provedor por ato administrativo bate de frente com trecho do mesmo PL segundo o qual a tal “autoridade nacional” não poderá adotar “práticas contra (...) [a] liberdade de expressão”; afinal, se calar milhões de usuários assim não é censura pura, atentado gravíssimo contra a liberdade de expressão, o que mais poderia sê-lo?
Lula, seu governo e a esquerda em geral jamais esconderam seu desejo de controlar o discurso público; se antes falavam na “democratização dos meios de comunicação”, o advento das redes sociais levou a uma mudança no discurso, enfatizando a “regulação das redes”. A chance de conseguir o poder de “desligar” uma rede social, colocada de carona em um projeto sobre um tema que mobiliza o país, é o melhor presente que a esquerda poderia receber, já que tentativas anteriores neste sentido falharam. É preciso correr contra o tempo para manter o que há de bom no PL 2.628 sem fazer dele o cavalo de Troia por onde a censura governamental pode se tornar lei no Brasil.
O editorial foi atualizado com a informação da aprovação do PL 2.628 na Câmara, ocorrida no fim da noite de quarta-feira. A versão em áudio reflete o texto original, publicado antes da votação.
Atualizado em 21/08/2025 às 08:10



