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Fachada do parlamento de Portugal: propostas para a eutanásia foram rejeitadas por apenas cinco votos | Parlamento de Portugal /Divulgação
Fachada do parlamento de Portugal: propostas para a eutanásia foram rejeitadas por apenas cinco votos| Foto: Parlamento de Portugal /Divulgação

Nesta terça-feira (29), o parlamento de Portugal rejeitou a legalização da eutanásia no país. O momento é de comemoração, mas também de alerta: embora os quatro projetos que estavam em discussão tenham sido derrubados, a minuta do Partido Socialista (PS), que congrega 86 dos 230 deputados, foi rejeitada por uma margem de apenas cinco votos. Não por acaso, o médico e ex-coordenador do Bloco de Esquerda (BE) João Semedo afirmou que a aprovação da eutanásia em Portugal é uma “questão de tempo” – mas isso não precisa, nem deveria, ser assim.

Desta vez, a esquerda portuguesa foi muito criticada por ter trazido o tema à baila para votação sem que tivesse sido discutido nas eleições parlamentares de 2015, mas os partidos que se alinham à agenda permissiva prometem insistir. Por enquanto, a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros do país manifestam-se contra a legalização. Os profissionais da saúde e diversos parlamentares, durante os debates desta terça-feira, externaram a preocupação de que a vagueza da linguagem nos projetos de lei abrisse as portas para autorizar muitos casos de eutanásia que os legisladores não tivessem em mente.

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A preocupação não é descabida. Em 2016, o caso de Mark Langedijk, de apenas 41 anos, levantou uma forte discussão sobre o tema na Holanda. Langedijk não era um idoso acometido de uma doença terminal, mas um alcoólatra considerado “irreversível”. No país, foram 1.882 eutanásias em 2002, quando o procedimento foi legalizado, e 6.091 em 2016. Já se estima que o número deva passar dos 7 mil este ano. Há profissionais de saúde que inclusive apoiaram a lei de 2002, mas agora expressam preocupação com o fato de que a opção pela morte esteja se banalizando.

A agenda permissiva aposta em uma concepção de liberdade egoísta e irresponsável, incompatível com o valor inestimável da dignidade humana

De fato, a lei holandesa parece levar esse risco em consideração, porque estabelece a necessidade de assistência médica, decisão voluntária, sofrimento “intolerável” e a falta de perspectivas de reversão do quadro médico. No entanto, permanece uma forte preocupação, plenamente justificada, de que as pessoas mais vulneráveis, como os idosos e os pobres, sintam-se desproporcionalmente mais propensas a escolher morrer em momentos de maior dificuldade. Em uma sociedade que normaliza essa opção através do poder normativo do direito, não surpreende que isso acabe acontecendo. No entanto, por mais que se tente combater ou mitigar esses efeitos – e a promotoria holandesa resolveu endurecer em março deste ano, ao abrir uma investigação em quatro casos de abusos –, há um problema mais profundo com a eutanásia.

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Muito embora seus defensores aleguem que a decisão de morrer é uma decorrência da liberdade de cada um, a dignidade de cada ser humano impõe deveres não só aos outros, mas a si próprio. Assim como as pessoas não têm liberdade para fazer o mal aos outros, elas também não devem ter plena liberdade para fazer o mal a si mesmas. Essa é uma intuição básica que subjaz à vasta maioria das sociedades humanas e que se reflete, por exemplo, na proibição do comércio de órgãos. Se não fosse assim, não haveria nem sentido em restringir a eutanásia apenas para casos graves. Por isso, quando a lei permite que um médico mate, ou ajude a matar, alguém doente, mas não uma pessoa saudável, ela está refletindo a noção equivocada de que algumas vidas têm mais valor que outras. Esta é uma tendência preocupante e que, em geral, começa com a legalização do aborto: a de que a vida tem valor não em si mesma, mas pelo cumprimento de alguma função exterior a ela, como ter capacidade cognitiva ou sentir prazer e dor, por exemplo. É como se algumas vidas fossem mais descartáveis que outras.

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Curiosamente, a defesa mais clara da concepção profunda e tradicional da dignidade humana no Ocidente veio do Partido Comunista Português (PCP), para o qual “inscrever na Lei o direito a matar ou a matar-se não é um sinal de progresso, mas um passo no sentido do retrocesso civilizacional”, porque deve prevalecer o “valor intrínseco da vida” e não a “valoração da vida humana em função da sua utilidade”. O PCP também lembrou que o Estado (e a sociedade, acrescente-se) deveria usar os avanços tecnológicos para aumentar a qualidade da vida, e não dar cabo dela. No campo médico, essa opção tem nome: é a “ortotanásia”, que consiste em abandonar os meios que prologuem artificialmente a vida do paciente, sem abdicar do suporte básico, investindo nos cuidados paliativos até que a vida cumpra seu curso natural.

Apesar disso, a maior parte da esquerda portuguesa e no restante do mundo está alinhada à agenda permissiva que aposta em uma concepção de liberdade egoísta, irresponsável e hedonista, incompatível com o valor inestimável da dignidade que é intrínseca – não é dada nem retirada por ninguém – a cada ser humano. O desafio que se coloca a quem compreende esta realidade é ganhar o coração, a mente e o imaginário do público, porque aqueles que não a compreendem seguirão trabalhando para negá-la.

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