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Certa vez, perguntaram à jornalista Glória Maria se em algum momento da vida ela sofrera discriminação racial. A resposta foi "não". Glória disse ter sido alvo de outra coisa: de "olhares". Obviamente, o "rabo de olho" se deu antes de se tornar um dos rostos mais conhecidos do jornalismo brasileiro. Explicou do que estava falando: o "olhar" é algo indefinível, pois sua intenção não pode ser registrada em cartório, apenas intuída por quem o recebe, diante do silêncio e insinuação de quem o envia. Ocorre sempre no espaço público – lojas ou lanchonetes, por exemplo.

O depoimento serve para ilustrar o terreno escorregadio que ronda o debate racial no Brasil. Falar disso nos é difícil. Acreditamos na democracia racial da mesma maneira que acreditamos ser o país do futuro. Mas um check-list à nossa volta basta para mostrar que os negros estão fazendo os trabalhos mais humildes, moram mais longe, são em menor número nas salas de aula. Contra todas as evidências, algo – tão indefinível quanto os olhares furtivos – insiste em dizer que "é", mas "não é bem assim".

O lugar desfavorável dos negros, em suma, não nos parece uma prova do racismo, como se uma coisa não estivesse ligada à outra. Esquizofrenia? De fato. A estrutura é segregacional, mas não eu e você. Daí a simpatia que suscitou o livro Não somos racistas, de Ali Kamel. Ou as contínuas referências ao estudo A cabeça do brasileiro, de outro sociólogo, Alberto Carlos Almeida, autor de uma controvertida quantificação que acenou haver mais discriminação contra pardos nascidos no Nordeste que contra os negros.

Como de todo o resto no Brasil, o racismo não é assunto para ser tratado de forma amadora. Não dá para abraçar a ingênua defesa da nossa cordialidade, nem dá para ir aos extremos, reduzindo o Brasil a um país intolerante e fascista, dado a disfarces de delicadeza. Temos um racismo à nossa moda, e não há salvação sem esforço de entender esse labirinto de "olhos" que se cruzam por aí. Se não somos racistas, como diz Kamel, sabemos que existe racismo, como garantem os negros. E um racismo cheio de patas. Basta lembrar que no Brasil os negros "embranquecem" à medida que se mexem na pirâmide, indicando que nosso preconceito de classe é tanto quanto maior o preconceito de cor. Sofisticado e cruel assim.

Para quem acompanha o noticiário, a discussão voltou à baila. Eis que de repente o demodê brado de "macaco" foi entoado nos estádios do país, contra juízes de futebol e jogadores negros: Tinga, do Cruzeiro; o volante Arouca, do Santos; e o árbitro Márcio Chagas da Silva. A Gazeta do Povo do dia 10 contou outras histórias, como a do haitiano Stanley Joseph.

Pois que venha o debate público. Que sejam colocadas na mesa as condicionantes históricas – é desonesto ignorar as raízes deixadas pelo nosso passado escravocrata. Às estatísticas: à revelia das divisórias entre negros e pardos, somos, grosso modo, 55 milhões de pobres, 24 milhões de pobres extremos, os dois lugares ocupados majoritariamente por homens e mulheres de "pele escura", como se dizia. É nefasto – a desigualdade, já disse o pesquisador Ricardo Henriques, de tão brutal se tornou uma experiência natural, que de natural não tem nada.

Nessa conversa, que se leve em conta a cultura formada em torno da negritude. Não se trata de vitimização. Trata-se de conquista – deles. Desde a luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, na década de 1960, afros de todo o mundo se puseram a mexer no vespeiro, alcançando mais respeito e janelas nas quais pudessem discursar. No Brasil não foi diferente. A pesquisa de Alberto Carlos Almeida, diga-se, mostrou que o negro é olhado também de forma mais respeitosa, apesar de todas as nuances desse relacionamento cheio de pequenos limites, cuja melhor tradução são os elevadores de serviço e as criadas vendo tevê com as patroas, mas sentadas numa cadeira. Parodiando Kamel, podemos não ser racistas, mas somos algo próximo disso.

Apesar de toda a sutileza que ronda a barbárie do racismo no Brasil, apesar da fragilidade legal, há menos tolerância com brutamontes deixando bananas no retrovisor de um juiz de futebol. A grita dos estádios, prontamente denunciada, nasce dessa indisposição em ficar quieto. O atacante Adílson, do XV de Piracicaba, um dos injuriados, admite essa mudança de postura. Os negros sempre foram humilhados nos estádios. Mas agora não vão mais aceitar isso. O momento é de ir à forra. Esse "agora chega" é rico, pois o país se vê diante da necessidade de enfrentar discussões raciais, nem que doa.

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