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Editorial

Criminalização da crítica a políticas públicas é novo ataque à democracia

Sergio Habib JAC Motors
Sergio Habib, presidente da JAC Motors Brasil, pode ficar cinco anos preso por criticar a isenção fiscal a PCDs no Brasil (Foto: Reprodução/YouTube/PrimoCast)

“Desacreditar ou atacar medidas públicas é crime” – em janeiro, a jornalista Eliane Cantanhêde usou esta frase para criticar um vídeo do deputado Nikolas Ferreira sobre novas regras para monitoramento de movimentações financeiras. Pois Cantanhêde está fazendo escola: no país onde a liberdade de expressão vive um apagão, até o Ministério Público e a Justiça passaram a aceitar a ideia de que criticar uma lei ou uma política pública é algo que, em vez de ser um direito garantido pela Constituição, deveria levar à responsabilização legal. Um caso absurdo ocorrido em São Paulo mostra a que ponto chegou a incompreensão sobre este direito básico.

Mais de um ano atrás, em maio de 2024, o presidente da montadora JAC Motors Brasil, Sergio Habib, participou de um podcast e criticou as regras para a concessão de isenção fiscal a portadores de deficiência que compram carros. “20% das vendas de carros é para deficiente físico. Sabe o que o governo poderia fazer? Acaba com [isenção fiscal para] deficiente físico e você baixa o preço dos carros em 5%”, afirmou ele. Além de defender que o fim do benefício baratearia o produto para todos os consumidores, ele ainda argumentou que a isenção fiscal é concedida para tipos ou graus de deficiência que não criam limitações à mobilidade. “As pessoas compram carros para deficiente... É gente como a gente, não tem problema nenhum. Se é surdo de uma orelha você já é deficiente. É uma vergonha o deficiente físico no Brasil, nenhum outro país no mundo tem isso”, afirmou.

Criticar leis ou políticas públicas, e pedir por sua revisão ou substituição, nem de longe poderia ser considerado crime – pelo contrário: é um direito básico que está na própria essência da democracia

Isso bastou para a promotora Natália Rosalem Cardoso, do Grupo Especial de Combate aos Crimes Raciais e de Intolerância (Gecradi) do Ministério Público paulista, denunciar Habib por discriminação, e a Justiça aceitar a denúncia. O MP invocou o artigo 88 do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), que pune o ato de “praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência”, com a agravante de crime cometido “por intermédio de meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza”, o que pode levar a penas de 2 a 5 anos de reclusão e multa.

Repare-se que Habib não defendeu que as concessionárias deixem de vender carros para portadores de deficiência, ou que façam algum tipo de triagem para fazer a venda com isenção fiscal a algumas dessas pessoas, mas não a outras. Tampouco afirmou que os portadores de deficiência que fazem uso do benefício previsto em lei deveriam ser ostracizados pelo restante da população, como se fossem eles os responsáveis pelos altos preços dos veículos. Obviamente, nem sequer insinuou que pessoas com deficiência não deveriam poder dirigir – tudo isso, sim, poderia caracterizar uma incitação à discriminação, mas nada disso está na entrevista do empresário. Nem mesmo o termo “vergonha” pode ser usado como indício de que Habib tenha cometido esse crime, pois todo o contexto da fala do empresário torna evidente que sua crítica não se dirige aos portadores de deficiência, e sim às regras estabelecidas pelo governo.

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E, ao contrário do que acreditam os novos censores que proliferam na imprensa, no MP e na Justiça, criticar leis ou políticas públicas, e pedir por sua revisão ou substituição, nem de longe poderia ser considerado crime – pelo contrário: é um direito básico que está na própria essência da democracia. Como é possível que todo o poder emane do povo, como afirma a Constituição brasileira em uma de suas primeiríssimas frases, se esse mesmo povo não pode nem sequer discutir por quais leis ele quer ser regido? Quando se chega a esse ponto, a democracia já está soterrada. Só nas ditaduras é que governos e as regras por eles emitidas são considerados infalíveis, com a crítica sendo transformada em crime.

Ainda que a liberdade de expressão possa ter suas nuances e mesmo limitações, há outros aspectos dela que são essenciais, e sem os quais já não se pode dizer que se vive em um sistema democrático. A possibilidade de criticar leis e políticas públicas é um desses aspectos. A hoje abolida Lei de Imprensa (5.250/67), por exemplo, afirmava nos incisos VI e VII do artigo 27 que “não constituem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação: (...) a divulgação, a discussão e a crítica de atos e decisões do Poder Executivo e seus agentes, desde que não se trate de matéria de natureza reservada ou sigilosa; a crítica às leis e a demonstração de sua inconveniência ou inoportunidade”. Ainda que esta lei em específico já não tenha validade no Brasil, o que ela contém a esse respeito faz parte da melhor doutrina sobre liberdade de expressão.

Só nas ditaduras é que governos e as regras por eles emitidas são considerados infalíveis, com a crítica sendo transformada em crime

Este é o mesmo princípio, aliás, que norteia a posição da Gazeta do Povo sobre outro tema que voltou a ser discutido no STF: a Marcha da Maconha. Por mais que sejamos firmemente contrários a qualquer legalização do uso de drogas, aqueles que defendem uma revisão da lei sobre esse tema têm todo o direito de tomar as ruas e se manifestar neste sentido – desde que não haja nem a incitação ao cometimento de crimes, com o incentivo à venda ou ao consumo, nem a apologia, com o elogio a usuários ou traficantes que desafiam a lei e os órgãos de segurança. A simples crítica à lei e os pedidos por sua revisão são um direito que independe inclusive dos argumentos usados. Os defensores da legalização da maconha podem estar totalmente errados sobre o caráter “inofensivo” da droga, e Habib pode estar equivocado sobre o efeito do fim da isenção fiscal nos preços dos automóveis; isso é totalmente irrelevante, e essas alegações devem ser tratadas por meio do livre debate de ideias, sem a interferência do braço estatal.

Querer criminalizar a crítica a uma lei ou política pública que beneficia um determinado grupo ou minoria, caracterizando essa manifestação como discriminatória, é uma distorção grosseira do próprio conceito de discriminação e uma agressão não menos grosseira à garantia constitucional da liberdade de expressão – e, consequentemente, um ataque frontal a um direito básico em uma democracia. Como advertimos a respeito do julgamento no STF sobre a equiparação da homofobia ao racismo, MP e Justiça estão, aos poucos, criando uma lista de tabus, temas que não podem ser discutidos sob circunstância alguma; o processo contra Sergio Habib acaba de acrescentar mais um item a essa já extensa lista.

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