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Editorial

O reconhecimento da Palestina e a solução de dois Estados

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O primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin (à esquerda), o líder palestino Yasser Arafat (à direita) e o presidente norte-americano Bill Clinton (centro) durante a assinatura dos Acordos de Oslo, em 1993. (Foto: Avi Ohayon/Israeli Government/EPA)

A solução de dois Estados, judeu e palestino, como forma de encerrar o conflito árabe-israelense voltou à tona recentemente. Apenas na última semana, Andorra, Austrália, Bélgica, Canadá, França, Luxemburgo, Malta, Mônaco, Portugal e Reino Unido anunciaram o reconhecimento de um Estado palestino, elevando para 157 o número de países-membros da ONU que consideram o Estado da Palestina uma nação soberana. A recente onda de reconhecimentos, no entanto, foi criticada pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas; e o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, tem repetido que “não haverá Estado palestino”.

O estabelecimento de dois Estados já era algo previsto na partição do Mandato Britânico da Palestina. O plano elaborado em 1947 pela recém-criada Organização das Nações Unidas previa a divisão do território para a criação de uma nação independente para os judeus, e outra para os árabes que habitavam a área, com um pequeno enclave sob administração internacional, compreendendo as cidades de Jerusalém e Belém. Como se sabe, os árabes palestinos e os países vizinhos rejeitaram a partição proposta, alegando, por exemplo, que o plano dava uma área ligeiramente maior aos judeus, embora a população palestina fosse duas vezes mais numerosa. Assim que os britânicos se retiraram, em maio de 1948, tropas dos países árabes vizinhos invadiram a região; Israel venceu a guerra e expandiu seu território para além do previsto no plano da ONU; as áreas restantes foram anexadas por Egito, Jordânia e Síria, acabando com a perspectiva de os palestinos terem sua própria nação. Décadas depois, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza acabariam ocupadas por Israel em novas guerras.

Enquanto Israel tiver de conviver com uma ameaça existencial em suas fronteiras, a solução de dois Estados, por mais desejável que seja, continuará inviável

A maior alteração nesse status ocorreu entre 1993 e 1995, quando os Acordos de Oslo, assinados entre Israel e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) com mediação norueguesa, levaram à criação da Autoridade Palestina, que exerceria um governo com autonomia limitada na Cisjordânia e em Gaza. Ainda que os acordos não criassem um Estado palestino, essa seria a meta final das futuras negociações, que acabaram sabotadas por extremistas tanto judeus quanto palestinos, bem como por governos israelenses linha-dura que fizeram vista grossa ou mesmo incentivaram a expansão de assentamentos judaicos na Cisjordânia.

No entanto, a Autoridade Palestina jamais conseguiu se tornar plenamente funcional. Ao longo das décadas de 50 a 80 do século passado, a militância palestina havia se dividido em vários grupos, todos adeptos da violência e do terrorismo em maior ou menor grau, e que não hesitaram em iniciar uma guerra fratricida pelo poder. Uma dessas disputas, ocorrida em 2006 e 2007 entre o Fatah e o Hamas, terminou com este último controlando a Faixa de Gaza, enquanto a Cisjordânia segue sob administração da Autoridade Palestina. Ainda que a OLP (da qual o Fatah é parte) tenha reconhecido o Estado de Israel na assinatura dos Acordos de Oslo, o Hamas tem entre seus objetivos a destruição da nação judaica. E é especialmente por isso que, hoje, a solução de dois Estados continua impraticável e os recentes reconhecimentos acabam se tornando contraproducentes.

Por mais críticas que se possa ter à forma como Israel vem conduzindo sua campanha militar em Gaza, como resposta à barbárie terrorista de 7 de outubro de 2023, Netanyahu tem um bom argumento quando critica os países que acabam de reconhecer o Estado palestino, afirmando que tais nações “pretendem dar-lhes [a ‘assassinos, estupradores e queimadores de crianças’] um Estado no coração da terra de Israel”. Por mais que alguns países tenham ressalvado que o Hamas “não terá papel algum no futuro da Palestina”, como afirmou o governo britânico, fato é que hoje o Hamas governa a Faixa de Gaza, e reconhecer o Estado palestino traz consigo uma legitimação ao menos implícita da autoridade do grupo terrorista.

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Mas tampouco a posição do atual governo israelense é aceitável. Uma coisa é se opor à instauração de um Estado palestino enquanto o Hamas (ou qualquer outro grupo terrorista que pregue a aniquilação de Israel) tiver algum tipo de poder em Gaza ou na Cisjordânia; outra coisa, muito diferente, é recusar a própria ideia de um Estado palestino, mesmo depois que a ameaça tiver sido erradicada. Negar a essa população seu direito legítimo à autodeterminação e a definir seu próprio destino seria um desrespeito flagrante ao Direito Internacional, e a negação do legado da partição feita pela ONU em 1947 e dos Acordos de Oslo. Os palestinos que só querem viver suas vidas em paz, trabalhar e reconstruir sua terra não podem seguir eternamente tutelados por um governo israelense que pode até não desejar o extermínio da população palestina, mas claramente não a considera um sujeito de direitos no mesmo nível dos que vivem em Israel.

Nos últimos dias, quem articulou uma posição muito mais razoável foi o chanceler de Cingapura. O país apoia a solução de dois Estados e condena qualquer tentativa israelense de anexar territórios, mas o ministro do Exterior afirmou ao parlamento que só reconhecerá o Estado palestino quando ele puder ter um governo efetivo e funcional, que reconheça o direito à existência de Israel e renuncie ao terrorismo. Enquanto isso, a comunidade internacional deveria ajudar no fortalecimento da Autoridade Palestina e no isolamento das facções extremistas que não toleram ter como vizinho o Estado de Israel.

Enquanto Israel tiver de conviver com uma ameaça existencial em suas fronteiras, a solução de dois Estados, por mais desejável que seja, continuará inviável. Se o objetivo da comunidade internacional é pressionar Israel para que reduza a intensidade de sua ofensiva militar, reconhecer o Estado palestino enquanto o Hamas segue governando parte dele é uma decisão que simplesmente não funciona. Quando os palestinos estiverem prontos para a paz e para a coexistência pacífica com o Estado judeu, também estarão prontos e serão merecedores de um amplo reconhecimento internacional para que finalmente tenham sua nação soberana.

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