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Editorial

Se falha a memória

Não é de hoje que, à boca pequena, diz-se que a política de preservação do patrimônio histórico da capital é palha que o vento leva. Sim – à boca pequena. Difícil criticar em alto e bom som um programa que nasceu para ser o melhor do Brasil. E que de fato foi, convertendo-se em uma das finas estampas do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba, o festejado Ippuc.

Mesmo assim – fala-se baixinho, para não magoar, que essa política tem um mal de raiz: goza de tamanha fragilidade legal que qualquer juiz pode bater o martelo e derrubá-la antes de bocejar. Só funciona tendo à frente homens de boa vontade. Muitos vilões da memória e donatários de imóveis de tempos idos sabem disso e parecem colecionar secretamente marretas nas suas oficinas. Quando não, deixam seu bem antigo à míngua, de modo que as goteiras, os cupins e as fogueirinhas acesas nos mocós se encarreguem do serviço sujo. A casa cai. A casa caiu.

Aos fatos. O Departamento de Patrimônio do Ippuc – nos tempos em que era visível para a sociedade local – bebeu nas melhores fontes para bolar seu discurso de preservação. E as melhores fontes mostravam que a mumificação de um bem histórico não traz bem nenhum. Um prédio de outrora, posto na redoma, afasta a população e vira um monumento empoeirado. Melhor usá-lo a tratá-lo como a rosa dengosa do Pequeno Príncipe.

Sem falar em um outro senão. Políticas muito radicais, à moda dos tombamentos feito pelo estado e pelo governo federal, fazem dos proprietários reféns do pinga-pinga de dinheiro público. Uma tormenta. Pois Curitiba, há mais de 30 anos, quis ser melhor do que tudo isso e implantou um projeto modelo. Depois de fazer um belo mapeamento do Centro Histórico, deu início à lista de 900 unidades de interesse de preservação, as Uips, e provou, na ocasião, que dá para preservar sem que o patrimônio vire um apêndice da cidade.

O nome UIP é de paladar difícil, mas é preciso guardá-lo, a não ser que não haja nenhum apreço com o passado. Precisamos pedir pelas UIPs como pedimos pelas creches, pela pavimentação e pela segurança. Porque ter UIPs é sinal de que nos tornamos um pouco melhores e de que demos um passo na escala da evolução. Sim – não são bens tombados, mas imóveis que serão cuidados em parceria – o proprietário e a prefeitura, o que combina muito com os melhores conceitos de cidadania.

Os gestores municipais avaliam, dão pistas para o restauro, apontam caminhos de uso do imóvel, impedindo que se tornem mausoléus sem serventia. O proprietário que topa a conversa lucra com isso. Se agir nos conformes, fazendo a parte que lhe cabe, pode conseguir desconto integral de IPTU. Melhor ainda – com a venda de "potencial construtivo" – nome dado à política de transferência do direito de construir –, consegue dinheiro para restaurar paredes, pisos e manter vitrais e frisos em ordem.

A proposta é tão coerente que até vale a pena correr o risco de vê-la escorraçada legalmente, já que, como reza a lei, "ter interesse" não é tombar. Pois, se o pacto é bom, não haverá guerra. O problema é que a guerra já foi declarada. Para surpresa geral da Nação, a prefeitura de Curitiba foi aos poucos deixando dúvidas sobre se é de fato mediadora da memória, minando o modelo que consagrou.

Não raro, leigos se perguntam se o interesse não recaiu todo sobre a consolidação das vias estruturais, onde se dará a panaceia de nossos males urbanos, o que implica tratar o mercado imobiliário a pão de ló e o patrimônio com chutes na canela. Raro encontrar donos de UIPs, antigos parceiros, satisfeitos com o estado das coisas e sem um desaforo para esbravejar.

A questão parece ser só uma: a política de troca entre proprietários e poder público não vai sobreviver se as UIPs forem tratadas como um problema arranjado pelos gestores de outrora, hoje duro de carregar. A conversa ficou pesada: quem detém uma unidade de interesse de preservação alega só ter obrigações, como se fosse a Gata Borralheira, sob a tirania da madrasta má. A prefeitura diz que o atual mal-estar é contingência: bens antigos são heranças nefastas, encrencadas em cartórios, não raro herdadas por gente que dá a mínima para as políticas de preservação. Daí tanto tiro.

Seria injusto dizer que a gestão municipal largou os betes. A revitalização da Rua Riachuelo e adjacências está entre as boas intervenções recentes. E – apesar do risco de ser uma tática eleitoreira – a expansão de algumas políticas de patrimônio para outros setores tem trazido benefícios. O "potencial construtivo", nascido para obrigar construtores a investirem, indiretamente, no patrimônio, atende também ao meio ambiente, à habitação social e à construção de creches.

A questão é que, ao expandir os ganhos das UIPs com mais setores, esqueceu-se de que o patrimônio não pode ser tratado como os outros. A competição está desigual, o que a médio prazo fará com que Curitiba só tenha grandes monumentos – como o Paço Municipal – protegidos. As casas, onde se deu a História da Vida Privada, vão ruir sob o peso da dificuldade, fazendo de capital um lugar igual a todos os outros, afundada na monotonia de binários, grandes avenidas, franquias em cada esquina.

Dá até para suspeitar que a massa não se importe com essa grita. Está longe o dia em que a memória será assunto do café da manhã das famílias. O que não dá para entender é por que, depois de conhecer a civilização, alguém esclarecido esteja preferindo a barbárie, pondo a perder nossas cristaleiras. Pode-se viver sem elas. Mas a sala fica sem graça.

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