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Editorial

A dobradinha do Senado contra credores de precatórios e a Lei da Ficha Limpa

PEC 66/2023, que parcela pagamento de precatórios a perder de vista (na prática, libera o calote), foi aprovada por 71 votos a 2 no Senado.
PEC 66/2023, que parcela pagamento de precatórios a perder de vista, foi aprovada por 71 votos a 2 no Senado. (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)

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As atenções do país podem estar monopolizadas pelo julgamento de Jair Bolsonaro e outros réus acusados de uma tentativa de golpe de Estado em 2022, mas o Brasil segue funcionando normalmente – inclusive o Congresso Nacional, que segue analisando e votando projetos de lei, alguns com efeitos bastante nocivos. E não exageramos quando afirmamos que o julgamento é uma distração bastante conveniente para aqueles parlamentares interessados em aproveitar que os olhos da opinião pública estão em outro lugar para “passar a boiada” e aprovar textos que lesam o cidadão ou a moralidade na política.

No último dia 2, o Senado realizou a última votação que faltava para a aprovação de uma PEC que será o sonho dos gestores públicos e o pesadelo daqueles que têm valores a receber da União e, especialmente, de estados e municípios. Por 71 votos a 2 – quase uma unanimidade, portanto –, a PEC 66/2023 foi aprovada, com novas regras para o pagamento de precatórios. O governo federal está feliz porque a despesa com os precatórios não voltará de vez para a contabilidade oficial do já desmoralizado arcabouço fiscal. Os parlamentares estão felizes porque a medida libera mais espaço no Orçamento da União, espaço este que eles esperam ver ocupado pelas emendas parlamentares. E prefeitos e governadores estão felicíssimos porque ganharam o direito oficial de dizerem “devo, não nego, pago quando puder”, já que terão um direito quase ilimitado a rolar e adiar os pagamentos.

O julgamento de Bolsonaro é uma distração conveniente para parlamentares interessados em aproveitar que os olhos da opinião pública estão em outro lugar para “passar a boiada”

Já quem tem reconhecido pela Justiça o direito de receber valores devidos pelo poder público só tem motivos para tristeza. O detentor de precatórios estaduais e municipais ficará sem saber quando, afinal, verá a cor do dinheiro. Todos os credores, a partir de agora, terão seus precatórios corrigidos não mais pela Selic, e sim pelo IPCA mais 2 pontos porcentuais ao ano. “Os credores vão perder dinheiro ao esperarem nessa fila que hoje, no Paraná, por exemplo, está em 17 anos. Muitos morreram e muitos outros vão morrer na fila dos precatórios. Muitas empresas quebraram e outras vão quebrar na fila dos precatórios”, afirmou, de forma certeira, o presidente da OAB Paraná, Luiz Fernando Casagrande Pereira – o Conselho Federal da entidade já prometeu ir ao Supremo para derrubar a emenda constitucional no mesmo dia em que ela deve ser promulgada.

No mesmo dia 2, também o Senado aprovou o Projeto de Lei Complementar 192/2023, que vai para sanção presidencial e modifica – mais uma vez – a Lei de Inelegibilidades, que foi endurecida pela Lei da Ficha Limpa, em 2010. Essa conquista do povo brasileiro, pela qual políticos condenados, especialmente aqueles que atacaram o patrimônio público por meio da corrupção – se viram obrigados a ficar longe da vida pública por um bom tempo. Por isso mesmo, passada a euforia inicial pela aprovação, 15 anos atrás, muitas forças políticas começaram a se perguntar como seria possível ir aguando aos poucos o texto até que ele perdesse seu poder. Algumas dessas tentativas tiveram êxito, como o PLP 9/2021, que retirou a inelegibilidade do administrador público que teve suas contas reprovadas por irregularidade dolosa – ou seja, intencional –, mas que acabou punido apenas com multa.

O PLP 192 não chega a esse extremo, mas altera (sempre para baixo) prazos de inelegibilidade, inclusive para quem já foi punido – é o caso do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, pai da deputada Dani Cunha, autora do PLP 192. Em vários casos, a inelegibilidade terminaria apenas oito anos após o fim do mandato que havia sido perdido ou cassado; em outros, o político permanecia inelegível por mais oito anos depois de terminar de cumprir sua pena, em casos de condenação criminal. Agora, esse prazo é reduzido: ele será de oito anos a partir da perda do mandato (por renúncia ou cassação), da data da eleição em que houve crime, ou da condenação por órgão colegiado da Justiça ou em segunda instância – o marco exato depende do caso específico. Além disso, o projeto também determina que, em caso de múltiplas condenações, o prazo total de inelegibilidade não supere 12 anos.

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O resultado final teria sido ainda pior, se não fosse por uma emenda de última hora proposta pelo senador Sergio Moro: no caso dos crimes contra a administração pública, “de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; de redução à condição análoga à de escravo; contra a vida e a dignidade sexual; e praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando”, será mantida a regra atual, com a inelegibilidade perdurando até oito anos depois do fim do cumprimento da pena. Entidades como a Transparência Internacional já condenaram a aprovação do projeto, chamando-o de “pauta corporativista que contraria a opinião pública” e de um “retrocesso no combate à corrupção” que “amplia riscos de infiltração do crime organizado nas eleições”.

O show trial que está sendo conduzido no STF ainda deve durar mais uma semana, e merece, sim, que o sigamos acompanhando, porque ali estão sendo escancarados todos os problemas e abusos do “processo do golpe”. Mas ele não pode monopolizar as atenções do país de forma que a opinião pública não se faça ouvir quando absurdos vão sendo votados e aprovados no Congresso Nacional. As próximas semanas devem ser decisivas para quaisquer alterações na lei eleitoral que os congressistas queiram ver valendo já em 2026, pois elas teriam de ser aprovadas até o início de outubro. Vigilância continua sendo a regra.

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