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Quem foi jovem na década de 1970 – e até um pouco depois disso – bem lembra daquela reunião do grupo de jovens em que se falava da fome no mundo. A imagem de um etíope famélico ou de um retirante da caatinga enchia a moçada de vontade de mudar o mundo. A revolução, fosse qual fosse, passava pela mesa. Há pouco mais de uma década, quando chegou ao poder, o presidente Lula ainda se alimentava desse imaginário juvenil. E qual não foi a surpresa quando lhe contaram que, em vez de uma campanha da fome, nos moldes da criada pelo sociólogo Betinho, devia fazer uma campanha pela redução da obesidade. Lula subiu na cadeira e mandou erguer o som da caixa. Mas teve de engolir a verdade.

Não se pode dizer que a fome ficou para o passado, deixada quieta em algum documento amarelado das bandeiras políticas e sociais. Há quem padeça desse mal, é fato, e são milhões. Mas em paralelo a ele, e com escala industrial, a população do mundo sofre com o sobrepeso e com a obesidade. E esse não é mais um problema dos endinheirados, se é que um dia foi propriedade deles.

O alerta está dado – epidemias como a hipertensão e o diabetes vêm na esteira dos quilos a mais. Não dá mais para ignorar. Números divulgados semanas atrás pela Organização Mundial da Saúde (OMS) se impõem. O excesso de peso causa algo como 2,8 milhões de mortes a cada ano. De acordo com a consultoria McKinsey, o número está pari passu com as vítimas de guerras e com os derrotados pelo tabagismo. Acertou quem disse que, depois das denúncias em cadeia contra a indústria da fome, viria uma nova onda – contra a indústria do açúcar. Os empresários do ramo, arrisca, sabem mais do que admitem.

Não para aí. Os prognósticos da OMS apontam que, no ano que vem, metade dos adultos de todo o planeta enfrentará algum dissabor causado pelo sobrepeso, o bastante para calcular os prejuízos: a obesidade consome US$ 2 trilhões da riqueza do planeta, lesando a economia global em quase 3%. Haveria 2,1 bilhões de pessoas fazendo parte dessa estatística.

No lugar da "geografia da fome", título do livro célebre de Josué de Castro, chegou a hora de escrever a "geografia da obesidade". Até uma década atrás, o mapa passaria pelos Estados Unidos, com honras no quesito gorduras. Hoje se espraia por países menos desenvolvidos, cujos moradores ganham mais e mais acesso aos tais dos produtos superindustrializados, disponíveis a preço de ocasião em qualquer prateleira, inclusive a das farmácias.

O primeiro contato com os dados da OMS provoca uma reação cívica. Os governos precisam reagir, incentivando programas de reeducação alimentar e tudo o mais, de preferência em cascatas. Mas é preciso descer um pouco ao rés-do-chão e entender que o assunto exige esforço concentrado. E essa é a questão – há uma resistência crônica em fazer da alimentação o prato do dia. O termo não se impõe como assunto na agenda das escolas, da imprensa, das famílias, sem os quais a ação do Estado pode não passar de palha ao sabor do vento. Comer errado está naturalizado. Ficamos cegos ao preço pago pela saúde pública.

O combate aos males da obesidade e o desenvolvimento da segurança alimentar passam pela pressão popular. É preciso falar sobre isso e exigir que as unidades de saúde, por exemplo, imponham-se também como unidade alimentar, tal e qual propõe dom Mauro Morelli, da ONG Harpia Harpyia, uma referência no assunto no Brasil.

Um bom subsídio para quem quer romper o silêncio em torno da alimentação é a nova edição do Guia Alimentar para a População Brasileira, lançado em novembro pelo governo federal. Vem em boa hora. Pesquisas recentes como a "Vigilância de Fatores de Risco" – feita em 2013 – indicam que quase 51% dos brasileiros estão acima do peso, sendo 17,5% obesos. Nos últimos anos essa porcentagem só faz crescer. O alarme do mundo soa aqui, ao que o guia serve o que é próprio do mundo da alimentação – um discurso bom e barato.

As dicas são simples de guardar – passam por comer sem dividir o garfo com o telefone celular, discussões familiares e assuntos de trabalhos. Recomenda-se alimentação caseira, alimentos frescos e minimamente processados. E um pé atrás com os quitutes cheios de sal, servidos em saquinhos, sujeitos a toda sorte de maquinários. É difícil, mas não está de todo errado quem diz que a boa alimentação pode se tornar a ideologia do século 21. Algo a nos unir, enfim.

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