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Editorial

A tributação regressiva e a desigualdade social

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Imagem ilustrativa. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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Na longa jornada percorrida pelos projetos de reforma tributária, que culminou com a aprovação da nova estrutura tributária pelo Congresso Nacional, mas sem ainda terem sido aprovadas as alíquotas dos novos tributos em leis complementares, há dois aspectos que não foram devidamente tratados nem debatidos com a intensidade e o cuidado necessário: o caráter de neutralidade dos impostos e os efeitos sobre a desigualdade de renda entre as classes sociais.

Quanto ao primeiro aspecto, um país tem sistema tributário neutro quando os tributos arrecadados se destinam a financiar os gastos do governo – serviços públicos, investimentos e transferência direta de renda – sem provocar alteração sobre os preços relativos. A tributação neutra funciona para que, se há dois produtos em que o preço de um é metade do preço de outro antes da tributação, essa relação continue a mesma após a tributação, pelo fato de o porcentual de impostos sobre os dois produtos ser o mesmo.

Sobre a tributação não neutra, além da função de financiar os gastos públicos, ela também é usada como instrumento para alterar os preços relativos, o que ocorre quando o governo decide cobrar, sobre certos produtos, um tributo maior do que o cobrado sobre outros tipos de produtos. É o caso dos impostos sobre cigarros e bebidas alcoólicas, cobrados em porcentuais maiores do que as alíquotas que incidem sobre bens de primeira necessidade.

Os pobres pagam mais impostos que os ricos como proporção de suas respectivas rendas. Essa é uma das mais condenáveis distorções do sistema tributário brasileiro

Se o Brasil optasse por uma carga tributária não neutra, a primeira providência seria definir quais produtos devem sofrer tributação moderada, média e alta. A sociedade já demonstrou que toleraria impostos mais altos sobre produtos nocivos à saúde, como os já citados casos de cigarros e bebidas alcoólicas, e também sobre bens de alto luxo, como joias, roupas e carros. Pela tributação não neutra, os produtos taxados com tributos mais altos têm seu preço final aumentado em função da maior carga de impostos sobre eles. Na reforma tributária ainda em andamento, esses tributos são chamados de “imposto seletivo”.

Em 2002, último ano do governo Fernando Henrique Cardoso, um estudo do Ministério da Fazenda alertava para a estranha situação do sistema tributário brasileiro, que carregava as camadas mais pobres da população com tributos em valores superiores ao valor dos serviços públicos a elas prestados. Na época, o estudo foi divulgado e afirmava que a tributação brasileira atuava no sentido inverso de combater a desigualdade social e a má distribuição da renda, distorção essa que foi reforçada por estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2010, último ano do segundo mandato de Lula.

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Naquele estudo do Ipea, órgão do governo federal, constava a informação de que a contribuição do governo para a desigualdade de renda tinha várias fontes, a exemplo da remuneração dos funcionários públicos, maior que a oferecida pelo setor privado em atividades equivalentes, e da aposentadoria oferecida pelo serviço público, igualmente bem superior às do setor privado. Essa situação revela o papel regressivo da tributação nacional: os pobres pagam mais impostos que os ricos como proporção de suas respectivas rendas. Do ponto de vista social, essa é uma das mais condenáveis distorções do sistema tributário brasileiro.

Entre as causas das distorções está o excessivo número de impostos indiretos, a exemplo das contribuições como PIS e Cofins, cobradas sobre o faturamento das empresas, obrigando todos os consumidores a pagar o mesmo valor, sejam ricos ou sejam pobres. O imposto indireto tem o defeito de incidir sobre faturamento, não sobre a renda da empresa (o lucro). Entre os impostos indiretos, os dois maiores são o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

O imposto indireto, ao atingir igualmente pobres e ricos, não escolhe pagador e não leva em conta quem é o consumidor dos produtos tributados. Um bom exemplo é o caso do consumo de energia residencial. Como a fração da renda gasta pelo rico com sua conta de energia é muito menor que a fração da renda gasta por uma família pobre, os pobres acabam entregando ao governo uma fração muito maior de sua renda, pelo pagamento do ICMS incidente na fatura, do que a fração entregue pelo rico.

O imposto indireto, ao atingir igualmente pobres e ricos, não escolhe pagador e não leva em conta quem é o consumidor dos produtos tributados

Os países desenvolvidos não carregam a população com tantos e pesados tributos indiretos quanto o Brasil. E mesmo aqueles países que adotam o imposto indireto o fazem cobrando alíquotas menores que as cobradas no Brasil. Os impostos diretos sobre a renda – salários, aluguéis, juros e lucros – são os preferidos pelos países adiantados por terem melhor efeito distributivo em termos de renda, já que oneram mais quem ganha mais. A consequência desse panorama é que a desigualdade social já existente nas sociedades pobres acaba sendo agravada pela ação do governo, fazendo que se torne maior a necessidade de ampliar programas de assistência social (educação, saúde e previdência) e de transferência de renda (Bolsa Família, seguro-desemprego e subsídios à habitação popular).

Se o governo não ajudasse a piorar a concentração da renda, conforme mostra o estudo do Ipea, menor seria a necessidade de programas sociais feitos justamente em nome do combate à desigualdade de renda. Porém, caminhar nessa direção não parece ser o escopo da reforma tributária, que sofreu inúmeras modificações e remendos, levando à previsão de que o Brasil terá o maior IVA (Imposto sobre Valor Agregado) dual do mundo, em forma de dois tributos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

Caso a reforma tributária seja concluída com esses muitos remendos e exceções, o Brasil corre o risco de não cumprir nenhum dos quatro objetivos principais esperados de uma reforma tributária: simplificar o excesso de tributos, leis e normas; reduzir seu caráter de sistema que piora a desigualdade de renda entre as classes sociais; reduzir o peso da carga tributária sobre a produção nacional; e diminuir o número brutal de processos judiciais resultantes do inferno legal gerado pelo sistema tributário atual. Uma oportunidade única terá sido desperdiçada.

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