Há 16 anos é quase sempre igual a ONG chilena Corporación Latinobarómetro assalta o noticiário com uma pesquisa sobre "a quantas anda a democracia no continente". O levantamento, claro, se reveste de acontecimento: está se falando de países cujas razões e afetos com a democracia são leves como papel de seda. É preciso cuidá-los para que não se percam, como já aconteceu. É disso que a organização se ocupa, como a que nos prevenir da síndrome de República de Bananas que ainda nos persegue.
Os resultados da pesquisa em 2011 comprovam que melhoramos, mas que ainda balançamos. Aos fatos. A confiança dos brasileiros na democracia caiu 9% em um ano, foi de 54% para 45% um digno de se perguntar se os estudiosos chilenos não poderiam, por obséquio, contar as respostas tudo de novo. Vá lá que alguém se distraiu na tabulação.
Do término dos anos Lula para cá, cinco ministros caíram por causa de denúncias de corrupção; vassourinhas verde e amarelo viraram fetiche de manifestantes de ocasião. E passeatas só perdem e número e charme para os incríveis anos 60, debaixo de um sol psicodélico. Era de se imaginar que a crença na sociedade democrática andaria tão em alta no país quanto a paixão por celulares e alisamentos de cabelos. Mentem os números?
Especialistas se ocupam de entender a louca que deu na brava gente brasileira, mostrando-se se fé no meio de tantas velas acesas. Um deles é a economista chilena Mara Lagos para quem, não com essas palavras, só há uma resposta: nossa gente identificava a democracia mais nas falas do Lula do que de Dilma.
O ex-presidente, treinado nos achaques e calores dos palanques, falava, com artes de orador popular, sobre o que andava no prato e no bolso da nossa gente. Fazia-se compreender. Era irresistível. A democracia, nesse discurso, traduz-se pela resolução de problemas imediatos um carnê milionário, um sonho de Griselda.
Já Dilma a mulher que se debruça sobre a coisa pública e se ocupa de passar bomba de flit na corrupção pode soar como uma chefe de gabinete. Sua sofisticação é pouco palatável, como se estivesse batendo, obsessiva, nas teclas de uma velha Remington. Na cabeça de muita gente, a democracia que a presidente persegue já se encontra carcomida pelas bursites e erisipelas da vida, remediada com paciência e analgésicos.
Senhora Lagos não errou. Sua análise reforça o consenso de que o brasileiro, de tanto ganhar urtiga na pele e água fervente, vinga-se não acreditando em nada e em ninguém. Ao ouvir falar de política sim, ela mesma tende a recuar, rejeitando o que toma por uma conversa para boi dormir. Mas não é demais dizer que esse pouco caso é o grande culpado de nossos desacertos. Às falas.
Há pouco mais de quatro anos, o pesquisador Adauto Novaes promoveu o seminário "O esquecimento da política", que bem poderia se chamar "o apagamento" ou "o sucateamento" da política. O elenco de pesquisadores chamados para a discussão outra coisa não fez senão lembrar a borracha passada na palavra que desde a aurora da cultura grega é o segredo da civilização.
A conclusão a que chegaram é de se benzer: acredita-se cada vez menos que a resolução dos problemas do mundo virá pelas instituições. A resposta está na técnica um muro aqui, uma rua ali, mais policiamento, dinheiro e não se fala mais nisso. A política teria perdido a capacidade de fazer sonhar e de inventar um mundo melhor no qual se possa viver. Paradoxal a fria Dilma estaria mais para o sonho. O emotivo Lula mais para o feijão.
Ao insistir no combate à corrupção e na transparência como condição para que a democracia aconteça, a fala da presidente deve estar soando como um convite a patinar na lama. Melhor seria que ela pulasse a parte dos poréns e fosse logo para os entretantos, como ensinou o célebre filósofo Odorico Paraguassu. Que se esqueça o sentido das coisas, salvando-nos da frustração de nunca vê-lo realizado.
A crise do sentido, contudo, tem efeitos colaterais. O mal-estar diante da palavra democracia traz, por acréscimo, a rejeição à coisa pública e a aceitação, apática, de que tudo pode ser privatizado, embalado e vendido inclusive a civilização. A felicidade, desse modo, só pode ser alcançada em pequenos redutos familiares e de interesse tal como numa propaganda de loja de departamentos.
Como escreveu Robert Musil a descrença com o coletivo teria originado uma das maiores aberrações da modernidade: a vida organizada em torno do egoísmo e do consumo. Tudo desmancha no ar. É insustentavelmente leve. A própria cidadania, convertida em palavra da moda, ganha o sentido de defesa do próprio quintal e do direito de viver como se quer. A política estaria terceirizada. Que se ocupem dela os outros. É melancólico. Mas democracia não dá para mandar buscar junto com a pizza. Tomara nos demos conta disso e esteja tudo bem no ano que vem.



