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 | Felipe Lima
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É muito fácil confundir sociedade, Estado e governo, como se fossem apenas denominações diferentes para uma mesma realidade, representada pelo conjunto de cidadãos. Essa confusão chega até a ser interessante para aqueles que, no comando do governo, se proclamam a encarnação dos interesses da sociedade. Mas a distinção é necessária. Num sentido amplo, é verdade que o Estado pode ser entendido como a própria sociedade, enquanto estruturada e dotada de soberania. Abrange tanto os cidadãos quanto o governo e é mais ou menos equivalente a país, como quando nos referimos a Brasil, a Estados Unidos, a França, na sua totalidade. Pode-se designar por Estado, por outro lado, o que outros preferem denominar como governo, isto é, como a parte da sociedade que se especializa na busca do bem comum, ou seja, como o conjunto de organismos e pessoas dedicadas formal e oficialmente à gestão pública. Se se adota o primeiro entendimento, a finalidade da sociedade e a finalidade do Estado se identificam, porque estamos falando praticamente da mesma coisa. Se se adota o segundo, surge a questão: a finalidade do governo (ou do Estado, entendido assim mais restritamente) tem a mesma extensão que a finalidade da sociedade? O governo de um Estado deve apenas proteger as liberdades civis, promovendo segurança, paz, liberdade e justiça, ou deve ter finalidades adicionais?

Nosso ponto de partida é a definição de democracia e as razões pelas quais a devemos defender sem descanso. Se o grande valor da democracia está no fato de ser a única forma de governo que respeita plenamente a dignidade humana e permite aos seus cidadãos serem os autores de seu destino, temos de concluir que não se deve impor mais restrições à sua capacidade de definir esse rumo que aquelas estritamente necessárias. Isto é, através do voto e de outras formas de participação, a população, a sociedade, deve poder escolher os rumos que deseja para si e, através de seu governo, operacionalizá-los, sem excessivas restrições, ou seja, apenas com as restrições requeridas para preservar a dignidade de todos e de cada um.

Até onde vai o poder da maioria?

No fundo, a questão é: até onde vai o poder da maioria? Esta questão e as afirmações imediatamente anteriores são relevantes porque importantes pensadores introduziram concepções bastante restritivas sobre a finalidade do governo – concepções, todavia, bem elaboradas e valiosas, que merecem ser analisadas. São teorias, aliás, que vêm ganhando cada vez mais adeptos. Pense-se, por exemplo, no “liberalismo político” de John Rawls, de natureza “antiperfeccionista” (já esclareceremos o significado desse termo), ou no libertarianismo de Robert Nozick, também antiperfeccionista.

A liberdade dos indivíduos e a noção de justiça são os pontos fundamentais do atual debate filosófico, tal como vem se dando sobretudo no ambiente anglo-saxão, sobre as normas que regem a sociedade. Muitos teóricos contemporâneos, entre eles os citados no parágrafo anterior, entendem que a finalidade do governo se resume a promover a paz, a liberdade e a justiça. O antiperfeccionismo consiste precisamente na tese que rejeita qualquer possibilidade de o governo adotar, promover ou estimular uma determinada concepção abrangente a respeito do que é bom, belo ou valioso (seja a concepção liberal, ou marxista, ou kantiana, ou cristã, ou islâmica etc.). O governo deveria ser politicamente neutro em relação a essas ou a quaisquer outras visões de mundo.

É difícil estabelecer o exato alcance dessa tese. Se ela é tomada em sua literalidade e levada rigorosamente até as últimas consequências, uma conclusão prática seria o bloqueio a quaisquer políticas setoriais de estímulo econômico ou cultural. O poder público, por exemplo, não poderia apoiar uma orquestra sinfônica, uma companhia de balé ou alguma outra manifestação artística considerada importante, mas que não tem tanto prestígio junto a patrocinadores privados. Seria um favorecimento, um privilégio, para aquela concepção de bem que entende que a música clássica – ou aquela escolhida para o incentivo – merece uma especial atenção.

A liberdade dos indivíduos e a noção de justiça são os pontos fundamentais do atual debate filosófico

O governo não poderia nem mesmo promover uma determinada e específica vocação econômica. Imaginemos uma região que tem potencial turístico, ou para o agronegócio: o poder público estaria proibido de incentivar essas atividades; teria de deixá-las se desenvolver sozinhas e quaisquer políticas de estímulo deveriam ser gerais, aplicáveis a quaisquer setores. Alguém até poderia argumentar que, se há uma vocação genuína, ela florescerá sem que o governo precise ajudá-la. Mas por que o poder público não poderia oferecer sua contribuição naquilo que lhe compete, especialmente se a população entender que essa ajuda é importante?

Esses exemplos mostram que a tese antiperfeccionista, entendida assim estritamente, cria um governo que ficaria de mãos atadas, mesmo que a população percebesse a necessidade da ação estatal em alguma área.

O liberalismo de Rawls, por outro lado, como o de outros pensadores atuais, como Ronald Dworkin ou Richard Rorty, é um liberalismo de tendências sociais, que admite fortes intervenções estatais para políticas de caráter patrimonial e igualitário, promovidas em nome da justiça. É o caso, por exemplo, das cotas na educação ou as políticas de distribuição de renda. A admissão dessas intervenções é o que distingue esse grupo de pensadores liberais dos libertários, que defendem, como aqueles, a neutralidade estatal com relação a concepções abrangentes de bem, mas rejeitam, por outro lado, as intervenções igualitaristas.

Tanto a visão liberal antiperfeccionista quanto a libertária, ainda que interessantes, parecem-nos excessivamente restritivas e, portanto, equivocadas. E isso quer pela tese da “neutralidade” quanto a concepções abrangentes do bem, que ambas adotam, quer pela rejeição completa de iniciativas sociais de equalização, que apenas os libertários defendem. Na realidade, essas correntes não dão, a nosso ver, conta exata de toda a liberdade que deve caber à sociedade, seja diretamente, seja através do governo, para levar adiante seus projetos de futuro. O papel do governo, portanto, é mais amplo e inclui outros valores materiais a serem perseguidos, além da paz e da liberdade, e da justiça, também. Não vemos por que a sociedade não possa definir seus rumos e fazer escolhas, contando nisso com seu instrumento, que é o governo.

O papel do governo inclui outros valores materiais a serem perseguidos, além da paz, da liberdade e da justiça

É aqui que entram os defensores de outra vertente do liberalismo, chamada “perfeccionista”, como Joseph Raz, que entende que a visão antiperfeccionista restringe o papel do governo a um núcleo demasiado pequeno de competências, o que não parece compatível com o que se intui ser esse papel. A finalidade da sociedade é a promoção do bem comum em sua totalidade. É verdade que não cabe ao governo essa totalidade (do contrário, teríamos um governo precisamente totalitário), mas tampouco parece razoável que, dentro dos limites do Estado de Direito, não possa atuar subsidiariamente em prol de finalidades ou objetivos mais “materiais” (assim chamados por oposição aos objetivos meramente “formais” de paz, liberdade e justiça). O governo de um país, que, ainda com falhas, é a tradução do voto da maioria, deve ter necessariamente fins materiais concretos, que envolvem um plano de futuro, um projeto de desenvolvimento e escolhas concretas que induzam o florescimento de determinadas vocações econômicas, culturais ou artísticas.

Isso não significa a defesa de um intervencionismo que atribua muitas finalidades ao governo. Há limites infranqueáveis para sua atuação. Mesmo assim, parece-nos evidente que sempre deve haver espaço para ações e dimensões perfeccionistas. Pensemos na possibilidade de o Estado subsidiar iniciativas culturais mais sofisticadas. Não há dúvida sobre a legitimidade de tal subsídio, desde que atendidas, evidentemente, as prioridades circunstanciais de cada comunidade. Outra clara dimensão perfeccionista é a escolha feita por uma comunidade a respeito de um determinado projeto de desenvolvimento. A sociedade, através de seu governo, tem o direito de decidir que política industrial vai adotar.

A parcela do bem comum a cargo do governo tem, assim como a da sociedade, dimensões perfeccionistas que são inescapáveis a uma concepção verdadeiramente democrática. O que não se pode perder de vista é que o papel do governo é subsidiário: ele agirá naquilo que as pessoas, individualmente ou associadas, não conseguirem realizar por si próprias. A promoção da subsidiariedade e o reconhecimento de que há dimensões que são individuais e, por isso, protegidas da ação estatal são fundamentais para diferenciar o ideal perfeccionista de qualquer outra visão que proponha um Estado mais ativo e intervencionista.

Políticas públicas perfeccionistas são necessárias para a realização do bem comum. A grande sabedoria está sempre em compreender como implementá-las sem atingir indevidamente a esfera do cidadão.

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