...Tudo o que é sagrado é profanado; os homens, finalmente, serão obrigados a encarar as verdadeiras condições de suas vidas e suas relações com os seus companheiros humanos."
A primeira versão do Manifesto Comunista, redigida em alemão por Marx e Engels em 1847, foi concebida como bandeira da revolução para derrubar o poderio econômico da burguesia. Hoje, 158 anos e centenas de revoluções depois, restou intacto apenas o seu núcleo filosófico, a melancólica constatação de que mesmo as generosas idéias revolucionárias despedaçam-se e se liquefazem.
A dupla de autores não mencionou um aforismo latino resgatado por James Boswell um século antes: "Immota Labascunt et quae perpetuò sunt agitata, manent" o que é imóvel desaba e o que está em constante movimento, mantém-se. É mais direto, mais universal e mais verdadeiro.
O PT esqueceu Marx e provavelmente nunca deu muita trela a Boswell. Deveria. O projeto de poder engessou um partido nascido para agitar e agitar-se. Os destroços ainda fumegantes produzidos pelo depoimento do mago marqueteiro, Duda Mendonça, e as copiosas lágrimas vertidas nas últimas horas pelos petistas "autênticos" desvendam a força trágica e telúrica do apocalipse segundo Marx-Engels.
A genial jogada de Golbery do Couto e Silva ao estimular um sacolejo no então MDB com a criação de partidos de oposição alternativos (PT e PDT) teve inspiração dialética. Um quarto de século depois, a agremiação inventada para reinventar-se jaz fragmentada, consumida, abatida.
O pronunciamento presidencial na Granja do Torto nesta sexta-feira demorou para ser engendrado e de concreto pariu apenas um bode expiatório: José Dirceu. O ex-Todo-Poderoso será sacrificado, alguém precisa pagar pela sólida, rígida e imutável sucessão de trambiques e tramóias cuja dimensão só agora começa a delinear-se.
O responsável pelo aggiornamento do PT e artífice de sua ascensão ao poder estava teoricamente certo: trocou o vermelho pelo branco, tentou alianças à direita, disfarçou o ideário social com as doces ilusões pequeno-burguesas.
Foi desastroso na execução: o branco dos seus aliados era, na verdade, marrom desbotado. Buscou solidez no lúmpen político, mas cercou-se de velhacos, a começar pelo PL, Partido da Libertinagem a quem pagou 10 milhões para obter um vice-presidente com mirrado apoio no Congresso. Em seguida noivou ao longo de um ano para armar o inútil concubinato com o PMDB de Sarney.
José Dirceu vai pagar porque usou o "idealismo socialista" (a expressão é dele quando foi a Lisboa no início da temporada de escândalos) para encobrir as patifarias da camarilha que empunhava o glorioso estandarte de que "os fins justificam os meios" para colocar Land-Rovers em suas garagens e dólares nas cuecas.
Foi cínica a iniciativa do presidente Lula ao pedir as boas graças da CNBB em troca da adesão do governo às teses de "defesa da Vida", parecia Bush pedindo apoio aos calvinistas americanos. Foi tosca a idéia da ceia com Hugo Chávez na véspera do desastre, lembrou a malandragem ideológica do reacionário Jânio condecorando Che Guevara.
Agora, quando o presidente do PT, Tarso Genro, inicia uma mobilização em defesa do mandato do presidente ficam visíveis suas identidades com o adversário José Dirceu, que promete uma convulsão social se for aprovado o impeachment contra o presidente Lula. Nenhum político responsável cogita desta hipótese, a não ser o decrépito senador ACM, mas a celebrada República petista não pode ser preservada a custa de ameaças. Esta é a tal solidez que precede os grandes desmanches.
O PT desfaz-se no ar porque não levou Marx a sério: aferrou-se ao poder, não cuidou de outra coisa senão a continuação no poder e no poder só agiu para usufruir de seus privilégios. O sagrado profanou-se, irremediavelmente. Só resta aos cidadãos encarar as verdadeiras condições de suas vidas. E conferir o resto do Manifesto Comunista.



