• Carregando...

A aprovação, dias atrás, do transplante de DNA mitocondrial pela Câmara dos Comuns britânica, por 382 votos a favor e 128 contra, gerou intensos debates bioéticos sobre os limites da ciência na área da biotecnologia e da reprodução humana. De um lado, com esse tipo de tecnologia poderia ser evitada a transmissão de algumas doenças raras (correspondendo a 100 casos por ano na Inglaterra, ou um caso a cada 6,5 mil nascidos vivos), mas bastante graves, como alguns casos específicos de epilepsia, retardo mental, cegueira e doenças neuromusculares. Do outro, teremos não apenas um embrião com três pais, mas três valores importantes em conflito. E uma questão crucial.

A revista Veja, contudo, em uma reportagem sobre a decisão, procurou reduzir ou até mesmo anular a importância ética desse fato. Refere ali que não deveriam existir dilemas, porque aquilo que se está manipulando não são embriões ou células embrionárias, mas sim células germinativas – no caso, óvulos. E este procedimento, em que se transfere o DNA nuclear do óvulo da mãe para um óvulo de uma doadora (onde o núcleo foi previamente retirado e foram mantidas as mitocôndrias no citoplasma), geraria um embrião com DNA materno e paterno no núcleo, e um terceiro DNA de uma doadora presente apenas nas mitocôndrias. Como não se manipulariam embriões, e o DNA mitocondrial estaria ligado apenas a funções de respiração celular, correspondendo a cerca de 0,05% do montante do DNA humano, não existiriam, de fato, questões éticas. Será?

Para Habermas, a ciência possui três grandes interesses. O primeiro é o técnico: buscar uma forma de fazer concretamente alguma coisa. O segundo é o interpretativo: comunicar um sentido aos acontecimentos. E o terceiro é o emancipatório: libertar-nos de ideias geralmente aceitas sem o crivo do método científico. Porém, na sociedade secular, ela também interfere no domínio dos fatos. E, assim, precisa também ser controlada, para que sirva à humanidade e não se sirva dela. Para evitar isso, temos todos os documentos internacionais de ética em pesquisa.

Mas os valores envolvidos aqui são todos legítimos: o desejo de ter um filho normal, o uso da tecnologia para evitar o sofrimento e os benefícios da pesquisa com seres humanos. O conflito está em realizar um experimento ao gerar um ser humano com certas características pré-determinadas para evitar doenças graves, cujas consequências de longo prazo são desconhecidas, e que podem inclusive gerar outras doenças também graves. E quem poderia trazer as respostas? O método científico. Assim, a segurança de determinados procedimentos necessita ser avaliada por estudos que exigem anos de seguimento. Aprovar como certo, em um parlamento, algo cuja segurança ainda não foi bem definida cientificamente pode ter sido precipitado.

Mas crucial mesmo aqui é o sentido de humanidade. Aldous Huxley, em 1932, descreve em seu Admirável Mundo Novo um futuro hipotético em que as pessoas são condicionadas biologicamente e psicologicamente a viver em harmonia com as leis e regras sociais. Onde a luta para eliminar a doença, a agressão, o estresse, a culpa, a inveja, a guerra e a ansiedade finalmente chegara ao fim. Mas ao preço alto da homogeneidade e da mediocridade. Arte, ciência, religião, família e amizade deixaram de ter sentido e o que realmente importava era a gratificação imediata e um corpo perfeito. Uma perda completa do sentido de humanidade. Um futuro pós-humano. Uma ciência sem limites.

Não quero, com isso, afirmar que a manipulação mitocondrial ou a criação de híbridos possa trazer riscos àquilo que somos (ou que acreditamos ser) como seres humanos. Seria muita pretensão de minha parte. Mas também o oposto, imaginando todo desenvolvimento científico como intrinsecamente bom e que não necessita de uma reflexão maior, é algo perigoso e vazio.

Cícero Urban, médico mastologista e oncologista, é professor de Bioética e Metologia Científica na Universidade Positivo e vice-presidente do Instituto de Ciência e Fé em Curitiba.

Dê sua opinião

Você concorda com o autor do artigo? Deixe seu comentário e participe do debate.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]