A pandemia marcou um antes e depois do transporte público no Brasil. O distanciamento social e o incremento do trabalho remoto evidenciaram a fuga dos passageiros, que, na maior parte das cidades, não voltou aos patamares anteriores ao coronavírus. E, desde então, um cenário dual se formou no país: enquanto alguns municípios passaram a bancar tarifas zero ou muito reduzidas para a população, outros sequer conseguem inteirar os custos do transporte e subsidiar o que falta para fechar a conta que o passageiro já não consegue pagar.
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Uma conta simples mostra como o sistema funciona e qual o desafio atual, que expõe realidades tão distintas. Conforme a Constituição Federal, o transporte público de passageiros é responsabilidade dos poderes municipais no Brasil, que firmam contratos de concessão com empresas prestadoras do serviço. Salvo nas linhas intermunicipais, em que os governos estaduais entram em cena, em geral as prefeituras é que pagam o valor dos contratos de transporte, que envolvem a operação e manutenção dos veículos como um todo. E o montante desse custo é rateado na tarifa que o passageiro paga.
Mas vale lembrar que, na realidade, a divisão do custo é feita pelo chamado passageiro equivalente, ou seja, o passageiro pagante. Porque existem as gratuidades estabelecidas por leis federais para idosos, estudantes, policiais e outras categorias que, na média, respondem por cerca de 20% da demanda. “Ou seja, eu divido todo esse custo por 0,8% e acabo cobrando do cidadão de baixa renda o preço da gratuidade alheia. Porque para as empresas não existe gratuidade. O sistema tem um custo, independente de quem passa na catraca”, explica o presidente-executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Francisco Christovam.
Usuários estão migrando para outros modos de transporte
Com passagens que aumentam a cada ano para acompanhar a subida de preços de insumos e modernização do sistema de transporte, o usuário brasileiro que tem alguma alternativa parece estar decidido a deixar o coletivo. Migra para a bicicleta, para a moto ou para o serviço de aplicativo. Para ele, o ônibus virou um custo-benefício que não compensa. Depois da pandemia, que amplificou outras possibilidades de deslocamento e trouxe o trabalho remoto para ficar, boa parte dos passageiros que abandonaram o transporte público não voltou mais.
Curitiba, capital do Paraná, é um bom exemplo deste cenário. Em 2022, a Urbs, empresa pública municipal responsável pela gestão do transporte, registrou 150 milhões de passageiros transportados. Em 2019, ano anterior à emergência sanitária, o total foi de quase 204 milhões. Com menos gente circulando nos ônibus, consequentemente o rateio do custo do sistema passa a ser dividido por menos usuários. O resultado é que a passagem encarece e o município precisa subsidiar valores maiores ano a ano para não onerar tanto o passageiro pagante. “Em torno de 18% dos custos do sistema são gratuidades. Curitiba subsidia basicamente o valor equivalente a elas, o que dá cerca de R$ 180 milhões por ano”, afirma Ogeny Pedro Maia Neto, presidente da Urbs.
A questão é: como em um cenário em que cidades alegam subsídios além da conta para o transporte, outras tantas prefeituras brasileiras estão implantando a tarifa zero?
Cidades a caminho da tarifa zero
Hoje, no Brasil, 80 cidades praticam tarifa zero no transporte. Na maior parte delas (69), a gratuidade para o passageiro abrange todo o sistema durante todos os dias da semana. Em 61% dos casos, a tarifa zero é praticada em cidades com menos que 50 mil habitantes. E apenas 10% desses municípios têm mais de 200 mil habitantes.
As regiões onde esses municípios estão concentrados são principalmente Sudeste, com 50 cidades, e Sul, com 18. Destes municípios, 9 estão no Paraná (Cianorte, Clevelândia, Ibaiti, Ivaiporã, Matinhos, Paranaguá, Pitanga, Quatro Barras e Wenceslau Braz). O maior deles é Paranaguá, com 157, 3 mil habitantes e um orçamento de R$ 1,9 milhão destinado a custear o transporte. Em São Paulo são 21 municípios. Em Minas Gerais, 19. No Rio de Janeiro, 7, e em Santa Catarina, 5.
Tarifa Zero é aplicada com restrições nas capitais
Entre as capitais, a tarifa zero é aplicada com restrições. Belo Horizonte (MG) pratica gratuidade somente nas linhas que atendem vilas e favelas; Maceió (AL) não cobra tarifa aos domingos; Palmas (TO), aos domingos e feriados; Florianópolis (SC) não cobra tarifa no último domingo de cada mês; em São Luís (MA), não pagam passagem trabalhadores registrados no programa municipal Expresso Trabalhador. Os dados são da NTU, de maio de 2023.
No total, 3,1 milhões de brasileiros são impactados com a tarifa zero no transporte coletivo. Número que cresceu essencialmente depois da pandemia. “Antes da pandemia tínhamos menos de 10 cidades que praticavam tarifa zero, que, ou eram muito pequenas, ou tinham receitas extraordinárias por conta de alguma atividade econômica importante”, explica Francisco Christovam, da NTU.
No Paraná, um case de sucesso
Cidades portuárias ou recebedoras de royalties por exploração de petróleo e gás são exemplos. Entre elas, Paranaguá, cidade paranaense que detém um dos principais portos do país, via o uso do transporte público em uma decrescente há pelo menos 20 anos. Em 2022, após estudar casos de outros municípios, a prefeitura resolveu bancar os custos integralmente e tornar o transporte gratuito para o usuário.
“Fizemos a otimização das linhas, revisamos as rotas, estudamos a implantação de multilinhas, procuramos não deixar o ônibus andar sem passageiros, pulverizando os horários para quando a população precisa mais. Não sabíamos como a população ia se comportar depois da implantação da tarifa zero, mas o resultado foi surpreendente”, conta a secretária de Serviços Urbanos de Paranaguá, Christianara Folkning.
O número de giros de catraca mais que duplicou, passando a uma média de 650 a 700 mil registros anuais. “A gente percebeu que as pessoas estão deixando o carro em casa e usando o transporte coletivo para ir trabalhar, e nos finais de semana famílias inteiras usam para o lazer”, exemplifica.
Quem banca o transporte gratuito em Paranaguá?
Para ter direito à gratuidade o usuário precisa se cadastrar no sistema da prefeitura. Cada pessoa tem direito a 16 passagens por dia e a regra é que só pode utilizar a mesma linha meia hora depois do primeiro embarque. Cerca de 70 mil pessoas são cadastradas no sistema, que conta com 22 linhas de ônibus.
O dinheiro para bancar os custos do transporte sai dos impostos, livres para a prefeitura gastar conforme achar que deve, desde que previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). O serviço absorve 3,7% do orçamento do município. E o segredo para fazer dar certo, diz a secretária, é uma conta simples. “Fora a otimização das linhas, que têm que ser constantemente atualizadas, em relação ao orçamento é verificar a receita e ver quanto pode disponibilizar. Não tem outro jeito. Mas entendemos que a tarifa zero é o maior programa de inclusão social que se pode ter. É uma questão de coletividade.”
Democratização do uso e fomento do coletivo
A linha de raciocínio da gestão de Paranaguá explica a percepção de Christovam, da NTU, sobre o aumento do número de cidades que buscaram a tarifa zero, ou até mesmo a aplicação de tarifas simbólicas em seus sistemas de transporte. A evasão do coletivo mostrou aos gestores que se não houver incentivo, o passageiro migra para o transporte individual e o sistema decai. “Tivemos uma mudança muito significativa no entendimento de que o transporte é um serviço público, essencial e estratégico. Um direito social previsto na Constituição que dá acesso ao cidadão a outros serviços públicos, inclusive”, explica.
E como resultado, enquanto as cidades que conseguiam encaixar as contas no orçamento passaram a implantar tarifa zero, outras, que ainda não entravam com subsídios para a tarifa, passaram a fazê-lo. Era o jeito para tentar trazer o passageiro de volta. Segundo o presidente-executivo da NTU, depois da pandemia pelo menos 160 prefeituras passaram a subsidiar parte dos custos do transporte, cobrindo pelo menos os custos referentes às gratuidades. Antes, poucas capitais praticavam o subsídio. “As autoridades perceberam que a população não tem capacidade de pagar e precisam completar o valor”, aponta.
Prefeitos se mobilizam para ter recursos da União
O caso gerou uma movimentação de prefeitos sem precedentes para tentar que o governo federal ajude a dar conta dos sistemas de transporte coletivo municipais. Tanto que o grupo de trabalho responsável pela mobilidade urbana na Frente Nacional de Prefeitos (FNP) vem realizando seguidos encontros com representantes do Ministério das Cidades para conseguir não apenas orçamentos esporádicos para pagar as despesas, mas principalmente um marco regulatório para o setor.
O vice-presidente nacional do grupo na FNP e prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB-RS), é defensor do que ele chama de Sistema Único de Transporte. A ideia é uma analogia ao Sistema Único de Saúde, o SUS, só que voltada à mobilidade urbana. “Precisamos ter um marco regulatório, que vai estabelecer o que compete aos municípios, aos estados e à federação, e é isso que estamos reivindicando em Brasília”, conta.
Entre as soluções apontadas, ele menciona juros zero para aquisição de novas frotas e a maleabilidade de tributos, como uma possível retirada do ICMS do diesel por parte dos estados ou o uso da CIDE, a Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico, como fonte de recursos para subsidiar o transporte coletivo municipal.
Enquanto a legislação seria construída – o que, segundo Melo já conta com um esboço em andamento no Ministério das Cidades – os prefeitos reivindicam que o governo federal garanta aportes mais significativos ao orçamento das cidades para custear o transporte. “Precisamos que o governo federal banque as isenções por pelo menos 2 anos. Isso dá um alívio no sistema enquanto a gente constrói a legislação para levar a votação.”
Se prefeitos e governo federal alinharem bem o texto, a expectativa é que o Congresso caminhe junto na aprovação. “Eu não subi a passagem na perspectiva de que a gente possa ter uma luz, mas muitos colegas prefeitos têm aumentos programados para os próximos meses”, afirma Melo, que pratica uma tarifa de R$ 4,80 em Porto Alegre, a qual ele afirma que sairia por R$ 4,00 caso o governo federal pagasse pelas gratuidades, atendendo ao apelo dos prefeitos.
Sebastião Melo classifica a tarifa zero como uma “utopia desejável”. “Para ter tarifa zero o marco regulatório tem que dizer de onde vamos financiar o sistema, porque ele não vai rodar de graça. Aqui tem um bom capítulo para discutir com a reforma tributária”, acredita.
Curitiba foca em modicidade, enquanto SP estuda gratuidade
Curitiba, capital do Paraná, é uma das cidades que estão mobilizadas junto com a FNP nas discussões do marco regulatório do transporte. Mas a medida mais urgente, na visão do presidente da Urbs, é garantir que as gratuidades garantidas por leis sejam pagas com recursos da alçada que as institui. “Nada mais justo que os governos federal, estadual e municipais que instituíram gratuidades tenham fonte orçamentária para cobri-las. Isso fará com que o sistema tenha certo equilíbrio orçamentário”, acredita Maia Neto.
O foco da prefeitura é a modicidade tarifária, já que tarifa zero, para o gestor, não é uma metodologia viável para o sistema na capital paranaense. “Os municípios que implantaram tarifa zero assumiram o custeio, dentro do seu orçamento, do valor correspondente ao transporte coletivo. Nós pagamos subsídio para pelo menos manter a tarifa do passageiro”, explica. Em Curitiba, a passagem custa R$ 6 desde março, quando sofreu um aumento de R$ 0,50.
Além disso, ele acredita que os municípios que adotaram a gratuidade para o usuário têm perfis diferentes. “As cidades que fizeram implantação da tarifa zero não têm um sistema compartilhado e integrado como o de Curitiba e dos grandes centros urbanos. O custeio disso é muito maior porque nós temos o afetamento de todas as cidades metropolitanas.”
Mesmo assim, a prefeitura de São Paulo estuda a implantação. Em um encontro da FNP no início de maio, o prefeito Ricardo Nunes reforçou que a tarifa zero é uma meta da prefeitura. “Nós estamos estudando. Os estudos não foram finalizados, mas alguns passos ainda precisam ser tomados como, por exemplo, alterações na legislação federal para que a gente possa ter fontes de recursos para implantar o transporte gratuito”, disse.
Segundo Nunes, entre 2019 e 2022 cerca de 2 milhões de pessoas deixaram de utilizar o transporte público municipal na capital paulista. “Diminuímos o número de pessoas utilizando o transporte coletivo e a gente precisa incentivar o uso para desincentivar o transporte individual”, justificou.
Em 2022, o subsídio do município ao sistema foi de R$ 5,1 bilhões. Sem ele, a prefeitura estima que a passagem, que custa R$ 4,40 e está congelada desde 2020, sairia por R$ 7,26.
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