Em todo o país, legislações locais elaboradas a partir do Novo Marco do Saneamento – lei federal 14.026/2020 – já começam a ser levadas para o Judiciário. O Paraná não escapou disso. Uma lei estadual (lei complementar 237/2021) feita na esteira do Novo Marco do Saneamento, e sancionada pelo governador Carlos Massa Ratinho Junior (PSD) em julho do ano passado, agora está sendo contestada no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJ-PR).
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Para o autor da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) protocolada no TJ, o deputado estadual Homero Marchese (Pros), a lei estadual dá mais poder ao Estado do Paraná na definição de quais empresas prestarão os serviços de abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto, interferindo na autonomia dos municípios. Na prática, continua Marchese, a lei estadual acaba beneficiando a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar), controlada majoritariamente pelo governo estadual.
A discussão jurídica em torno da lei estadual ocorre paralelamente ao movimento que a Sanepar já faz desde o final do ano passado para prorrogar os contratos que possui com os municípios até o ano de 2048. E, para a Sanepar, não se trata de burla ao Novo Marco do Saneamento, que, entre outras coisas, proíbe a extensão dos atuais contratos: a estatal alega que a inclusão de metas de universalização previstas no Novo Marco do Saneamento - atendimento de ao menos 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033 – obriga novos investimentos não previstos originalmente, daí a necessidade da “atualização” dos contratos, nas palavras da companhia paranaense.
A estatal sustenta que a melhor solução para amortizar o novo investimento, sem afetar as tarifas cobradas dos usuários do sistema, é esticar o período de vigência dos contratos. “Como, no caso do saneamento básico, a tarifa é um componente sensível ao usuário, mais que em outros serviços públicos, entendemos que a modicidade tarifária deve ser preservada ao máximo. (...). Isso posto, resta claro que, muitas vezes, a extensão de prazo se mostra o meio de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro mais adequado, ou o único viável, referente ao interesse público”, argumenta trecho de um parecer jurídico solicitado pela Sanepar. O documento, disponibilizado no site da Secretaria do Desenvolvimento Urbano e Obras Públicas (Sedu), é assinado pelos advogados Wladimir Antonio Ribeiro e Floriano de Azevedo Marques Neto.
O parecer jurídico também destaca que estudos elaborados pela Fundação Instituto de Administração (FIA) demonstram que o acréscimo do prazo de todos os contratos até 2048 é “suficiente para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, ao mesmo tempo que permite a manutenção de uma tarifa módica na prestação de serviços”. O ano de 2048 foi considerado por ser o término do contrato celebrado com o município de Curitiba, que “corresponde a uma parte considerável do faturamento” da companhia paranaense, com “impacto direto na prestação regionalizada dos serviços”.
Atualmente, a Sanepar é responsável por prestar serviços de água e esgoto em 345 das 399 cidades paranaenses.
Mas a tentativa da Sanepar de prorrogar os contratos tem chamado atenção, já que o Novo Marco do Saneamento, ao definir metas para acelerar a universalização dos serviços de água e esgoto, também aponta para a entrada da iniciativa privada na prestação de serviços do tipo: o Novo Marco do Saneamento determina que os municípios agora só podem contratar empresas de água e esgoto por meio de licitação; antes, eles podiam fechar contratos diretamente com as empresas estaduais de saneamento.
“A Sanepar está fazendo consultas públicas para prorrogar os contratos de água e esgoto do Estado até 2048, pouca gente está sabendo disso. E, no nosso entendimento, ela não poderia fazer isso. A Sanepar está fazendo isso com base em uma lei estadual aprovada aqui na Assembleia Legislativa, que no nosso ponto de vista é inconstitucional. Inclusive ingressei com uma ADI no Tribunal de Justiça discutindo isso, porque ela viola a autonomia dos municípios, para decidir se querem contratar a empresa outra para prestar o serviço de saneamento em seus municípios. Nessa ADI, os municípios de Maringá, Foz do Iguaçu, Cascavel e Paranavaí devem se habilitar como amicus curiae porque tem outra intenção em relação ao contrato de saneamento e esse é um assunto de enorme importância para a população paranaenses, que precisamos ficar de olho”, discursou Marchese, na última sessão plenária antes do recesso do Legislativo, em dezembro.
Na ADI, há um pedido de liminar para suspender a lei complementar até o julgamento final do caso. A decisão caberá à desembargadora Ana Lúcia Lourenço.
“De forma diametralmente divergente da proposta apresentada pelo Novo Marco do Saneamento, a Lei Complementar 237/2021 foi pensada, desde sua concepção, com o único propósito de prorrogar indefinidamente o monopólio da Sanepar sobre a prestação dos serviços de saneamento nos municípios paranaenses. Pior, a Lei Complementar foi arquitetada de forma a permitir a ampliação da prestação de serviços da Sanepar nos municípios hoje ainda não alcançados por ela e sem qualquer possibilidade de defesa destes, haja vista que caberá ao Estado do Paraná a fixação do regimento interno do modelo de gestão compartilhada definido na referida norma, sendo impossível a discordância dos municípios ao modelo apresentado pelo Estado”, argumenta trecho da ADI, assinada pelo escritório Paludo & Paschoal Advogados.
Entre outras coisas, a lei complementar cria no Paraná três microrregiões (Oeste, Centro-leste e Centro-litoral) de serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, administradas por “colegiados microrregionais”. Entre as atribuições dos grupos, está a de autorizar ou não o aditamento de contratos mediante reequilíbrio econômico-financeiro e a de autorizar ou não um município a prestar isoladamente os serviços públicos, por exemplo. No âmbito do colegiado microrregional, o Estado do Paraná terá número de votos equivalente a 40% do número total; e os municípios terão número de votos equivalente a 60% (cada município terá número de votos proporcional à sua população).
Outro lado
Procurada pela Gazeta do Povo sobre o tema, a Sanepar se manifestou através de uma nota. A companhia paranaense afirma que “segue a diretriz de trabalhar sempre para a manutenção e a renovação de todos os contratos e também com a ampliação de sua base de atuação, inclusive, no exterior, na exploração de serviços públicos e sistemas privados de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, entre outras atividades”. Também afirma que “o modelo do Paraná segue rigorosamente” o Novo Marco do Saneamento e a legislação estadual. “Todo o processo de elaboração da legislação estadual foi amplamente discutido com a sociedade em consultas e audiências públicas”, acrescenta.
A Gazeta do Povo também questionou a Sanepar sobre a abrangência do serviço prestado hoje. A companhia paranaense respondeu com os números referentes à área urbana: “Atualmente, a Sanepar atende 100% da população urbana com água tratada nos 346 municípios em que opera (345 no Paraná e um em Santa Catarina). No esgotamento sanitário, o índice de atendimento está em 77,24% da população urbana com acesso à rede coletora de esgoto, sendo que 100% do esgoto coletado é tratado”. “A Sanepar trabalha para o cumprimento das metas definidas no Novo Marco do Saneamento dentro dos prazos estabelecidos”, informa.
“Não vamos renovar de jeito nenhum”, diz prefeito
Embora a Associação dos Municípios do Paraná (AMP), comandada atualmente pelo prefeito de Jesuítas, Júnior Weiller (MDB), já tenha sinalizado que é contra a ADI que tenta derrubar a lei estadual feita na esteira do Novo Marco do Saneamento, há prefeitos de municípios que nem querem ouvir falar na possibilidade de manter a Sanepar como prestadora dos serviços de água e esgoto. Caso de Paranavaí, que vem travando uma batalha jurídica com a estatal há anos.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o prefeito de Paranavaí, Carlos Henrique Rossato Gomes, o Delegado KIQ (PODE), explica que o município pretende assumir o serviço de água e esgoto e que “não vamos renovar de jeito nenhum” com a Sanepar. A ideia, segundo ele, é garantir uma tarifa menor aos usuários e que o ganho obtido com a exploração do serviço seja revertido integralmente para o próprio município.
“Temos cerca de 40 mil unidades consumidores, com baixa inadimplência. Temos 100% de água tratada e de 85% a 90% de esgotamento sanitário. Então é um município que está próximo da universalização, que precisaria de um investimento pequeno. Uma exploração altamente rentável. A diferença [se assumirmos os serviços] é que o superávit seria investido na cidade e não destinado a acionistas [da Sanepar]”, disse ele.
O prefeito de Paranavaí explica que a Sanepar atua no município desde 1973 e que já foram feitos dois aditivos. Em 2018, já na sua gestão, não houve prorrogação. Mas a estatal continua prestando os serviços, através de um contrato precário. Para sair de lá, segundo o prefeito, a companhia paranaense estaria exigindo uma indenização de R$ 85 milhões – o que representa quase um terço do orçamento anual da cidade. O prefeito contesta o valor cobrado e a questão, atualmente, está sendo discutida no âmbito do Tribunal de Justiça. Enquanto isso, a prefeitura segue planejando a retomada da exploração dos serviços.
Na condição de amicus curiae, a prefeitura de Paranavaí também endossa a ADI do deputado estadual Homero Marchese. Para o Delegado KIQ, não houve debate suficiente na elaboração da lei estadual.
Números
Levantamento realizado em 2021 pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR) revela que 39 municípios têm serviços de água e esgoto administrados por uma autarquia, 14 pela própria administração pública direta, um por empresa privada e 345 pela Sanepar.
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