Cotidiano de Antigamente

Paulo José da Costa

Meu caro Moreira Garcez, apresento-lhe João Zaco Paraná

Paulo José da Costa
21/12/2021 10:11
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Fico a imaginar a cena: num rico escritório do Rio de Janeiro, o empreiteiro Domingos de Souza Leite, diretor da conhecida Companhia Nacional de Construções Civis e Hidráulicas, que desde o império e por décadas a fio ajudou a construir obras pelo Brasil, pega a pena e um papel de carta e escreve. Ao seu lado estava o jovem Jan Zak, que retornava de estudos da Europa com uma bagagem formidável de aprendizado, arte e talento. Põe o papel nas mãos do artista dizendo palavras de incentivo e termina: - entregue ao Moreira Garcez e diga que envio o meu respeito e um abraço a ele e sua família… Bem, se não foi assim, foi parecido.
Jan Zac era polonês de nascimento, mas veio com a família para o Brasil ainda muito criança, como milhares de europeus fugidos da fome e das guerras. Dono de um talento inato para a escultura, teve a ventura de ser notado pelos engenheiros ferroviários François Gheur e Affonso Solheid lá na pequena Restinga Seca, em Porto Amazonas, interior do Paraná.
Os grandes amigos João Zaco Paraná e João Turin.
Os grandes amigos João Zaco Paraná e João Turin.
Quis o destino que aquele jovem, que viera para cultivar a terra numa colônia, mercê de seu talento e do olhar de pessoas sensíveis, em vez de calejar as mãos na enxada, assim o fizesse no mármore. Imagino o entusiasmo daqueles engenheiros, a ponto de praticamente adotar o menino, enviando-o para estudar na capital, de onde saiu para se aperfeiçoar nos maiores centros da Europa. Era uma época em que talentos paranaenses recebiam apoio e incentivos para se desenvolver. Para encurtar a história, após se graduar na Academia Real de Belas Artes da Bélgica, com bolsa do Governo do Estado do Paraná (bons tempos!) e passar alguns anos em Paris, na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, convivendo com João Turin e a nata dos artistas que enriqueciam a vida cultural da cidade-luz, retornou finalmente ao Brasil.
E é nesse ponto que chegamos novamente à nossa carta. Com ela em mãos, chega o escultor a Curitiba, agora já com o nome que escolhera para homenagear o Estado que amava, João Zaco Paraná. E ouso conjeturar que nesse encontro com o prefeito Moreira Garcez, um dos mais inteligentes e progressistas com que a cidade teve a sorte de contar, nasceu a ideia de se esculpir a estátua “O Semeador”, que enfeita a praça Eufrásio Correia, em frente à antiga estação ferroviária. Os poloneses das diversas colônias que povoaram nosso estado, queriam homenageá-lo no centenário da independência brasileira. E o que poderia ser melhor do que um artista talentoso, oriundo da própria colônia, esculpindo um monumento símbolo da atividade mais nobre que eles representavam, a de agricultor?
“O semeador” na praça Eufrásio Correia, foto de Arthur Wischral.
“O semeador” na praça Eufrásio Correia, foto de Arthur Wischral.
Essa a importância desse pequeno papel: além de nos dizer muito sobre o artista, possivelmente foi o elo de ligação que nos presenteou com um dos mais expressivos ícones culturais paranaenses, símbolo de reconhecimento de uma etnia ao rincão que a acolheu.
Nada mais quero dizer, o documento fala por si. Transcrevo-o na íntegra, com a linguagem e estilo da época.
“Rio, 30 de outubro de 1922. Meu caro Dr. Moreira Garcez, Saudações muito cordiais. O portador d’esta é um nosso compatriota e seu co-estaduano. É muito provável que o amigo não o conheça de vista, mas certamente o seu nome não lhe é desconhecido, pois que pelo seu merecimento, há algum tempo já adquiriu certa notoriedade. É o esculptor João Zak Paraná. Conheci-o desde mocinho, estudante de humanidades, quando veio do Paraná para matricular-se na Escola de Bellas Artes d’aqui. N’essa occasião, meu pai interessou-se pelo seu talento nascente e d’ahi a camaradagem que ainda hoje nos une. Depois, embora de longe, segui sempre o seu brilhante curso na Belgica, para onde fora, ajudado pela generosa pensão que lhe dava o seu Estado natal, do qual elle conservou sempre a mais sincera saudade e gratidão, a ponto de tomar-lhe o nome.
As três páginas da carta de apresentação.
As três páginas da carta de apresentação.
O nosso jovem compatriota trabalhou na nossa Exposição, e vai ao Paraná em visita a sua familia, que não vê há longos annos. Aproveito a opportunidade para apresental-o ao governador da linda Capital Paranaense. Elle muito terá a lucrar com a sua estima e amizade e penso que o amigo não se arrependerá em conversar com elle sobre assumptos que digam respeito ao embellezamento da sua cidade. O Zak Paraná, além de ser paranaense, é artista de verdade. Sempre seu, Domingos de Souza Leite”.