51 anos em 3 minutos: Os Mutantes em Curitiba, um vídeo mudo e o sorriso de Rita Lee

Filipe Albuquerque, da equipe Pinó
22/05/2023 19:22
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Sergio, Rita e Arnaldo, nos últimos momentos da cantora como integrante. Banda já caminhava rumo ao rock progressivo. | Leila Lisboa/reprodução

Três dias depois da morte de Rita Lee, um vídeo postado no dia 11 de maio por Ivo Zagonel Júnior em seu perfil no Instagram mostrava, em pouco mais de três minutos, imagens da cantora com os Mutantes em Curitiba, em 1972. Por ser feito em Super 8, o vídeo não tem som. Em pouco tempo no ar, foram mais de 100 mil visualizações. São os únicos três minutos e oito segundos do também único registro conhecido até o momento da primeira passagem da principal banda de rock do Brasil pela cidade – a única com a formação que reunia Rita Lee e os irmãos Arnaldo Batista e Sérgio Dias. E é provavelmente uma das últimas imagens da banda com a cantora entre os integrantes – ela foi expulsa do grupo naquele mesmo ano.
O vídeo ficou guardado com Ivo por cerca de 50 anos. Nesse período, exibiu apenas a amigos mais chegados – e anos atrás, para Sérgio, que se emocionou com as imagens. Depois de publicado, foi compartilhado por diversos perfis de fãs da banda e de gente ligada à cantora. O perfil de Arnaldo Batista no Facebook também publicou o material.
Ivo Zagonel Jr tinha 18 anos quando a banda veio a Curitiba. Junto com amigos, a maioria estudantes de engenharia, como ele, entre 18 e 22 anos, integrava o departamento universitário do Clube Sírio Libanês no início dos anos 1970. A área promovia aos sábados a programação da boatinha do clube, na antiga sede da Rua Padre Germano Meyer, 1.347. Ele e um amigo se revezavam como DJs, quando a nomenclatura ainda não era popular. Uma vez por mês, a banda curitibana A Chave abria a noite. Ninguém ganhava nada, mas a diversão era garantida. Foi essa turma diletante que decidiu trazer o trio formado na metade dos anos 1960 no bairro da Pompeia, em São Paulo, para uma única apresentação, lá mesmo no clube.
É mais ou menos isso que o vídeo feito por Ivo capta: a chegada da banda, os Mutantes com parte da turma da boatinha em um jantar, depois todos juntos na cozinha do Sírio Libanês após o show e a despedida na pista do antigo aeroporto Afonso Pena.

O sorrisode Rita Lee

“Naquela época,
o Clube Sírio Libanês tinha um departamento universitário”, recorda Ivo. “Éramos
um grupo de guris”, explica ao falar da turma que organizava as atividades da
boatinha. O presidente do departamento era o hoje arquiteto Fernando Karam. A
boatinha fazia sucesso – as noitadas terminavam por volta das 4h da manhã. A
polícia costumava fechar o trecho da rua para que as pessoas que frequentavam o
lugar pudessem circular com segurança. A confiança da garotada os levou a
pensar em trazer um nome da música nacional para uma apresentação no espaço. Os
escolhidos foram os Mutantes.
Fernando e
seu irmão, Ricardo Karam, já falecido, negociaram os valores com a banda. Cachês
e datas devidamente combinados, a turma da boatinha se preparou para receber o
quinteto – Rita, Arnaldo, Sérgio mais Dinho Leme (baterista, irmão do jornalista
Reginaldo Leme) e Liminha (baixista). A banda veio acompanhada de um roadie e
um segurança, um armário simpático e risonho de 1,90 metro de altura.
Em quatro ou cinco carros, a turma da boatinha se dirigiu para o velho aeroporto Afonso Pena para receber os Mutantes. Ivo, com sua câmera Super 8 Bell & Howell, registrou o momento: o pouso do avião da finada Trans Brasil – à época, era possível descer à pista para recepções ou despedidas. Havia ainda um terraço em que se assistia a pousos e decolagens ao ar livre, o que se transformava em um programa de fim de semana. Os tempos eram outros.
Rita, com 24 anos, aparece no alto da escada do avião, agasalhada para se proteger do frio, logo atrás de Sérgio Dias, com o violão em punho, e Liminha. Instantes depois, a câmera de Ivo focaliza o rosto de Rita, e ela sorri. “A Rita olha para mim, para a câmera, dá um sorrisão enorme”, resgata.
Do aeroporto,
o comboio seguiu para o Hotel Lancaster, na rua Voluntários da Pátria, onde a
banda ficou hospedada. À noite, turma e banda se reuniram novamente para jantar
em um restaurante, que pode ter sido o antigo Madalosso. Ivo diz não ter certeza
– lá se vão 51 anos. Rita volta a sorrir e a acenar para câmera durante o
jantar. O show aconteceu na noite seguinte.

O fuscãoque seduziu Sérgio Dias

Ivo era dono de um antigo Fusca, ou Fuscão, como era conhecido o modelo fabricado pela Volkswagen entre 1970 e 1972, o Fusca 1500. Mas o carro de Ivo tinha também rodas maiores, ou ‘talas largas’. Foi o suficiente para fazer com que Sérgio Dias escolhesse ir no carro dele do aeroporto ao hotel.
A passagem da banda por Curitiba deve ter sido entre junho e julho de 1972. Toda a divulgação se deu no tradicional boca a boca – Ivo não se recorda de publicidade nos jornais locais. Em maio daquele ano, a banda havia lançado Os Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets, quinto disco da carreira. De capa psicodélica e som na mesma vibe, o título brincava com a expressão criada por Tim Maia, que passou a chamar baseado de ‘bauret’, para não dar bandeira, a partir de um show feito em Bauru, no interior de São Paulo, com os próprios Mutantes.
O álbum saiu com atraso – a censura encasquetou com a faixa “Cabeludo Patriota”, conta Carlos Calado na biografia A Divina Comédia dos Mutantes (1995). A música foi rebatizada para “A Hora e a Vez do Cabelo Nascer”. E em vez de alterar alguns versos da música, conforme prometera à censura, a banda inseriu ‘tosses’ sobre as vozes para disfarçar a ousadia.
Os Mutantes nos anos 1970. Foto: Leila Lisboa/Facebook
Os Mutantes nos anos 1970. Foto: Leila Lisboa/Facebook

Tensão napassagem de som

Ivo lembra
que as fitas de Super 8 tinham apenas três minutos de duração. Os oito segundos
a mais do vídeo se deram por alguma sobra do material. E diz não ter filmado o
show porque a câmera não contava com tecnologia suficiente para captar imagens
com boa qualidade em um ambiente com a iluminação tradicional dos shows – nada
comparada à potência das luzes atuais.
Horas antes,
na passagem de som, Arnaldo e Rita discutiram sobre o uso do minimoog. Algo
tenso, percebeu Ivo. O instrumento era um sintetizador trazido por ela de uma
viagem a Londres. Que voltou com Rita para casa quando ela foi convidada pelos
irmãos Dias Batista a deixar o grupo meses depois. “A gente resolveu que a
partir de agora você está fora dos Mutantes porque nós resolvemos seguir na
linha progressiva-virtuose e você não tem calibre como instrumentista”,
registrou Rita em sua autobiografia, publicada em 2016.
Na boatinha cabia, talvez, 200 pessoas. Naquele espaço, o público se acomodou sentado no chão, na escada que levava ao mezanino e onde mais sobrasse um canto. Ivo diz não se lembrar se havia de fato um palco, um pouco mais elevado do chão, ou se a banda tocava no mesmo nível da plateia. Figuras ilustres da cidade, como Dino Almeida, à época colunista da Gazeta do Povo e o principal da imprensa local, e o também colunista Alcy Ramalho Filho, estiveram ali esparramados junto aos cabeludos que ocuparam o salão. O então presidente do Sírio Libanês, Zake Sabbag Filho, também assistiu à apresentação.
Diferentemente do que também ajudou a consagrá-los na cena nacional à época, o grupo abriu mão dos figurinos exóticos no show da boatinha. Era a fase em que se aproximavam do rock progressivo. O bom humor começava a dar lugar à técnica e ao virtuosismo.
Rita Lee e Sérgio Dias: a banda gostava de utilizar fantasias em apresentações ao vivo. Em Curitiba, foi diferente. Foto: Correio da Manhã/Wikimedia Commons
Rita Lee e Sérgio Dias: a banda gostava de utilizar fantasias em apresentações ao vivo. Em Curitiba, foi diferente. Foto: Correio da Manhã/Wikimedia Commons
A turma da boatinha voltou ao Lancaster no dia seguinte para levar a banda ao aeroporto. Conforme revelam as imagens, alguma coisa aconteceu que fez com que um dos integrantes da equipe dos Mutantes tivesse que correr, já na pista do Afonso Pena, para não perder o voo. Ivo não se lembra exatamente o que causou a pressa. O vídeo ainda mostra Rita Lee, solitária, caminhando para a aeronave, e o avião da Trans Brasil decolando em um dia frio e cinzento, tipicamente curitibano.
Ivo é pai de Caetano e Bruno Zagonel, ambos da banda curitibana Criaturas. Bruno é casado com Xanda Lemos, vocalista do grupo, e o casal mora nos Estados Unidos. Em 2001, Xanda fez uma apresentação no extinto Era Só o Que Faltava, na av. República Argentina, com Naina Carvalho. Sérgio Dias estava no local e se encantou com o som da dupla. O que levou a produzir um trabalho das cantoras.
Na ocasião, Bruno se lembrou do filme de 1972, já digitalizado, e mostrou ao guitarrista. “Ele ficou emocionadíssimo”, conta Ivo. “Ele não se lembrava de ter vindo para cá fazer o show com a piazada, e disse que talvez seja o único registro em película dos Mutantes, porque houve um incêndio que destruiu tudo o que a banda tinha em película”, diz.

Novos Baianos: futebol e 'efeitos especiais'

Dois anos
mais tarde, a turma da boatinha trouxe os Novos Baianos. A passagem do grupo
pela cidade não foi registrada por Ivo, mas ele se lembra de duas ocasiões engraçadas
da vinda da turma liderada por Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Luiz
Galvão, Odair Cabeça de Poeta e Baby do Brasil (então Baby Consuelo).
Com cachês e demais acordos firmados, a única exigência feita pela banda foi a de disputar uma partida de futebol com um time local amador. Os estudantes de engenharia que integravam o departamento universitário do Sírio Libanês colocaram o time de futsal da engenharia da UFPR para enfrentar os baianos. O resultado, lembra Ivo, foi uma goleada para os músicos. “O time deles era muito bom”, revela.
Na noite do
show, outra ocorrência, com potencial para um vexame inesquecível, revertido
pelo talento dos baianos. A banda tocava “Preta Pretinha” quando houve uma
queda de energia. Ivo, responsável pela parte tecnológica das atividades da
boatinha, saiu correndo em busca do disjuntor. Quando chegou do lado de fora, viu
que a rua toda estava sem energia.
No palco,
montado em um canto diferente do salão devido ao número de integrantes, os
Novos Baianos seguiram cantando “Preta Pretinha” no formato acústico, sem
microfones e amplificadores. E ficaram repetindo o refrão por cerca de 15
minutos, até que a luz voltou e o show seguiu.
Assim como na noite dos Mutantes, banda e equipe da boatinha se reuniram após o show na cozinha do clube. E a reação da banda quanto ao acontecido no show foi inesperada. “Eles disseram ‘que ideia sensacional que vocês tiveram de apagar a luz e deixar a gente só no acústico. A plateia achou o máximo’”, recorda Ivo, entre risos. “[A ocorrência] Foi estressante, mas no final acabou sendo recompensada”, acrescenta.
Em fevereiro de 1973, já sem Rita e mergulhados no rock progressivo, os Mutantes voltaram ao Paraná para uma apresentação no Festival de Cambé, região de Londrina, em um dos primeiros festivais de rock ao ar livre do país.