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Ministro Edson Fachin votou a favor da candidatura de Lula no TSE | José Cruz / Agência Brasil
Ministro Edson Fachin votou a favor da candidatura de Lula no TSE| Foto: José Cruz / Agência Brasil

O ex-presidente Lula não pode ser eleito por estar enquadrado na Lei da Ficha Limpa, mas pode se candidatar às eleições presidenciais por ser um direito atribuído à pessoa humana e previsto na Constituição, resguardado por tratados internacionais das quais o Brasil é partícipe.

Em resumo, a frase acima foi a base do entendimento do voto do ministro Edson Fachin, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ele foi o único favorável à candidatura de Lula entre os sete ministros da Corte, na madrugada de sábado (1º de setembro).

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Para Fachin, barrar a candidatura de Lula teria efeitos irreversíveis. Portanto, o mais adequado seria permitir a candidatura de Lula para evitar o chamado dano irreparável. Ele entende que, enquanto couberem recursos em questões da Lava Jato, deve prevalecer a cautela na permissão provisória da candidatura.

Caráter legalista

O voto de Edson Fachin surpreendeu. Era esperada unanimidade entre os sete ministros pela proibição da candidatura de Lula e deixou dúvidas em quem acompanhava a sessão. O ministro centrou seu voto em aspectos do Direito Internacional e da validade de recomendações do Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), que emitiu um comunicando apoiando a manutenção da candidatura de Lula.

Professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Davi Tangerino avalia que a autopercepção de Fachin pode explicar a decisão em descompasso com o colegiado:

“Ele se vê como um legalista comprometido com a letra fria da lei, e na interpretação dele da lei a representação do comitê da ONU tem algum valor. Não é o valor de colocar Lula em liberdade ou derrubar a decisão tomada em processo criminal, mas de que a ordem de preservação dos direitos políticos de Lula deveria ser sobrepujar à mera condição de inelegibilidade”

Lula assinou a Lei da Ficha Limpa quando era presidente da Repúblicaas/ms/ma/ANTONIO SCORZA

Fábio Medina Osório, advogado que já foi ministro da Advocacia Geral da União (AGU), analisa que ao menos dois princípios podem ser questionados sobre a importância de uma recomendação do Comitê da ONU: a soberania nacional e o princípio do contraditório. Ele destaca que a ONU não abriu prazo para operadores do Direito brasileiro se pronunciarem sobre o caso de Lula perante as leis nacionais.

“Como o Brasil vai observar uma decisão tomada apenas por dois peritos de um organismo [da ONU] que é composto por 18 peritos? Obviamente que o Brasil não fica vinculado a um organismo que não tem poder jurisdicional”, avalia Medina Osório. “É uma situação absurda”.

A desconstrução de Barroso

A partir da argumentação da defesa de Lula perante o TSE baseada na comunicação do comitê da ONU sobre o caso do registro de Lula, o relator do pedido de inelegibilidade no TSE, Luís Roberto Barroso, desconstruiu tal tese. O relator afirmou que o órgão internacional pedia que o Brasil observasse e analisasse se havia risco aos direitos políticos, sob a interpretação da lei local.

Para Barroso, a lei da Ficha Limpa de fato impedia a candidatura, afastando os argumentos da defesa. Ele ainda justificou parcialmente seu voto na falta de formalização da adesão do Brasil em tratados internacionais. Na opinião do magistrado, tais tratados teriam validade somente se tivessem sido chancelados pelo Congresso e pelo presidente da República, o que não era o caso. Apesar disso, Fachin encaminhou seu voto por uma vereda diferente.

Relator do pedido de inelegibilidade no TSE, Luís Roberto BarrosoNelson Jr./SCO/STF

O advogado Fábio Medina Osório ainda questiona se o recebimento da recomendação da ONU foi processada da forma adequada pela Justiça Brasileira. “Era necessária uma discussão muito mais profunda sobre se essa lei vulnera ou não tratados internacionais, e não da maneira como foi feito. Só isso já mostra a total fragilidade da metodologia usada pelo PT e pelo ex-presidente Lula para tentar questionar a legitimidade de uma lei que ele próprio sancionou (Ficha Limpa)”, afirma Osório.

Voto simbólico

O cientista político André César, da Hold Assessoria Legislativa vê como “simbólico” o voto de Fachin:

“Ele também compõe a Corte Suprema e aparece mais na opinião pública do que alguns dos colegas do TSE - até por ser o relator da Lava Jato. Sempre se espera que os ministros tenham base para seus votos e nunca podemos ter expectativas para votos de ministros em julgamentos, pois são um processo único. Mas é simbólico termos justamente o voto de Fachin contrário ao relator e ao resto da Corte. Talvez ele quis reforçar um caráter de independência”.

Entenda como o PT fez o pedido de recomendação ao Comitê da ONU

Com a decisão isolada do relator da Lava Jato no STF sobre o caso Lula, César avalia que o voto pode criar um discurso favorável para o ex-presidente e seu partido.

“Isso pode reforçar o discurso de vitimização que o PT vem construindo. Afinal, o ministro que mais entende o processo da Lava Jato, e até adotou posturas que foram criticadas pela esquerda em alguns momentos, agora traz um voto contrário ao do ministro relator e de seus pares”, avaliou o cientista político.

Decisão controversa: inelegível, mas candidato

Em seu voto de 22 páginas, o ministro Fachin gasta apenas uma pequena parte para justificar que julga Lula inelegível, estando enquadrado na Lei da Ficha Limpa. Segundo Fachin, não cabe ao TSE analisar a validade de outras leis que não ligadas à Justiça Eleitoral, nem a validade da condenação de Lula - que se tornou Ficha Suja - e sequer debater o mérito da lei da Ficha Limpa, aprovada no Congresso e sancionada pelo Poder Executivo pelo próprio Lula, quando era presidente da República.

Porém, na mais extensa parte de seu voto, Fachin analisou o que representava a recomendação da ONU e se cabia sua vinculação e sobreposição às leis brasileiras. Ele também centrou sua análise na transitoriedade da situação de Lula, tese defendida pela defesa do ex-presidente, que argumenta que ainda cabem recursos sobre sua condenação criminal no caso do Tríplex.

“A inelegibilidade do ex -Presidente, quando muito, sempre foi [de eficácia] provisória, passível de suspensão a qualquer momento”, afirmou a defesa da Lula na peça entregue ao TSE.

Ministro Edson Fachin defendeu a relevância da recomendação de especialistas da ONUVICTORIA SILVA/AFP

Em um voto longo e que confundiu quem o acompanhava, Fachin se ateve ao papel do Comitê de Direitos Humanos da ONU. Ao contrário de Barroso, Fachin entende que não é necessário aprovação pelo Congresso e posterior promulgação de tratados firmados no âmbito da ONU, muitos deles em alinhamento com a Constituição Brasileira. Ele lembrou que o Brasil participa dos debates na ONU e, portanto, avaliza a importância do órgão.

“Nada pode ser mais contraditório do que atribuir ao Comitê uma competência que venha a ser unilateralmente esvaziada”, afirmou Fachin em seu voto, conferindo peso à recomendação da ONU. “O direito à comunicação (de abuso pelos indivíduos) ao Comitê é, portanto, um direito garantido pela própria Constituição brasileira. Eis aí a força normativa da decisão do Comitê”, julgou Fachin.

Com esse entendimento, de forma oposta ao que considerou Barroso, Fachin justificou que a comunicação da ONU teria sim poder de “paralisar a eficácia” das 17 impugnações à candidatura de Lula.

“Embora inelegível por força da Lei da Ficha Limpa, não há como o Poder Judiciário deixar de reconhecer que a consequência de uma medida provisória do Comitê de Direito Humanos é a de paralisar a eficácia da decisão que nega o registro da candidatura. Essa não é uma opção do julgador: essa foi escolha do legislador constituinte, do Congresso Nacional e do Estado brasileiro que firmou e ratificou o Pacto”, afirmou Fachin em seu voto.

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Mesmo tomando como premissa a inelegibilidade de Lula pela Lei da Ficha Limpa, Fachin decidiu que Lula poderia se candidatar. Ele disse reconhecer o direito da candidatura com base na medida provisória do Comitê de Direitos Humanos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, e do parágrafo 2º do art. 5º da Constituição da República.

Para o professor Davi Tangerino, ao votar de forma diferente que seus pares, Fachin estaria ‘olhando friamente como uma recomendação do comitê da ONU que deveria ser introjetada no ordenamento jurídico brasileiro’. “Ele entendeu que ,neste caso, o modo de conciliar essa decisão da ONU era permitir a candidatura de Lula até trânsito em julgado. Acredito que foi uma busca pela legalidade”, avalia especialista.

Como o PT convenceu a ONU a enviar a correspondência

Desde o recebimento da correspondência da ONU recomendando ao Brasil atenção para possível descumprimento de princípio dos Direitos Humanos no caso Lula, houve grande questionamento sobre a validade e extensão desse tipo de medida internacional. Se por um lado o PT tratou o gesto como ato retumbante e suposta “denúncia” internacional, especialistas relativizaram sua importância.

O ponto central da defesa de Lula perante o TSE foi a prerrogativa dos Direitos Humanos e o Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos, monitorado pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU. É por meio desse sistema que qualquer indivíduo que entenda que estão sendo alvo de cerceamento de seus direitos humanos podem encaminhar pedido de parecer ou recomendação ao comitê da ONU e foi o que representantes de Lula fizeram, no dia 27 de julho.

No dia 17 de agosto, veio a resposta de integrantes do Comitê da ONU sobre o caso de Lula, com a conclusão de que haveria a indicação da “existência de um possível dano irreparável” aos direitos políticos do ex-presidente. Na carta enviada ao governo brasileiro, os conselheiros de Direitos Humanos recomendavam que o Estado Brasileiro “tomasse todas as medidas para garantir que o autor gozasse e exercesse seus direitos políticos, como candidato às eleições presidenciais de 2018”, até que acabassem todos os recursos de seu julgamento.

Para Fachin, segundo seu voto proferido no TSE no caso Lula, o papel do comitê de Direitos Humanos da ONU é garantir a efetividade dos direitos previstos nos pactos do órgão, muitos dos quais o Brasil apoia. E o sistema de comunicações individuais seria essa ferramenta, o que confere validade à ferramenta.

Entre juristas e especialistas de direito internacional, o ponto de discrepância sobre a validade formal de um tratado da ONU sobre a legislação brasileira também não tem consenso. Enquanto alguns avaliam que o presidente da República deveria publicar norma tornando válido no país tais pactos, outros afirmam que isso não é necessário para a validade das normas.

O advogado Fábio Medina Osório avalia que a forma de encaminhamento dessas decisões até mesmo fragiliza o papel do comitê da ONU. “Deveria inclusive a própria ONU abrir uma investigação para avaliar melhor as circunstâncias em que foi proferida essa decisão, passando por cima da soberania de um país. De algum modo isso desvaloriza até mesmo a ONU, que passa a ser desrespeitada pelos países na medida em que profere decisões dessa natureza”, avalia.

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