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Governo vai flexibilizar a posse de armas | Pixabay/
Governo vai flexibilizar a posse de armas| Foto: Pixabay/

Prestes a se tornar a primeira medida concretizada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) na área de segurança pública, a flexibilização da posse de armas é um tema que levanta polêmicas entre especialistas. Uma das promessas de campanha de Bolsonaro é justamente rever o Estatuto do Desarmamento, que entrou em vigor em 2003, para facilitar a posse e o porte de armas no país.

Mudanças significativas em relação à legislação devem, necessariamente, passar pelo Congresso Nacional. Mas Bolsonaro pode, por meio de decreto, alterar alguns pontos referentes à regulamentação da lei em vigor sobre o tema.

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Até a próxima terça-feira (15), segundo o ministro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, o governo deve editar um decreto facilitando a posse de armas. O texto deve trazer algumas mudanças em relação à legislação atual, como incluir a anistia a portadores de armas irregulares para que eles possam fazer o recadastramento, suprimir a necessidade comprovada para obtenção de posse de arma e elevar o prazo de registro de três para dez anos.

O que dizem os defensores da flexibilização da posse de armas

Especialista em segurança pública e presidente do Movimento Viva Brasil (MVB), Benê Barbosa é favorável a uma maior flexibilização na legislação sobre armas. O seu movimento já apoia a aprovação de um projeto de lei de autoria do deputado Rogério Peninha (MDB-SC), que propõe alterar normas sobre aquisição, posse, porte e circulação de armas de fogo.

“É um projeto que tem nosso apoio porque a gente entende que é um projeto ponderado, que visa garantir o direito de defesa do cidadão, o acesso a armas de fogo, mas obviamente mantendo a fiscalização e controle”, disse Barbosa.

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O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), filho do presidente, também defendeu nas redes sociais a flexibilização alegando que um dos efeitos seria a melhoria dos índices de segurança pública. “As armas servem para dar a possibilidade de legítima defesa ao cidadão que segue as leis (os bandidos já tem esse direito). A melhoria da segurança pública é um efeito secundário, que virá com o receio do criminoso de se deparar com uma vítima armada.”

O que dizem os especialistas contra a flexibilização da posse de armas

Para o coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, David Marques, o impacto de uma flexibilização na legislação brasileira sobre armas tende a ser negativo para a segurança pública. “As evidências que a gente tem no Brasil indicam que mais armas em circulação ou disponíveis na nossa sociedade, significam mais crimes, necessariamente”, defende.

Diretor-executivo do Instituto Sou da Paz, Ivan Marques também reforça o argumento. Para ele, a flexibilização vai ter o efeito de degradação da segurança pública. “A vontade de se alterar a legislação sobre armas ou as normas que regem o controle de armas do Brasil para atender necessidades de melhorar indicadores de segurança pública me parecem duas coisas que não fazem sentido juntas”, opina.

Barbosa rebate o argumento e diz que a flexibilização atende ao direito de legítima defesa dos cidadãos. “Não é que seja uma solução para a segurança pública. O que a gente está falando é em direito pessoal de legítima defesa, principalmente quando você está perante um estado incapaz de proteger minimamente o cidadão”, argumenta.

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A preocupação, segundo especialistas favoráveis à restrição ao acesso a armas de fogo, é com a tendência cultural de se resolver conflitos de forma violenta no Brasil. “A resolução de conflitos por meio da violência letal, quando tem uma arma envolvida, é muito potencializada”, argumenta David Marques.

Para Ivan Marques, do Sou da Paz, há evidências que mostram que a arma de fogo é um catalisador de violência no Brasil. “De maneira bastante acentuada em relação ao resto do mundo, nós resolvemos nossos problemas na bala”, diz.

Segundo o diretor do instituto, um levantamento feito pela Organização das Nações Unidas (ONU) mostrou que enquanto o mundo usa a arma de fogo para cometer homicídios em 40% dos casos, no Brasil esse índice é de 70%.

Como os números podem ajudar a discussão

Segundo o Atlas da Violência de 2018 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou 62.517 homicídios em 2016. Destes, 71% foram praticados com arma de fogo.

Segundo a publicação, entre 1980 e 2016, cerca de 910 mil pessoas foram mortas com uso de armas de fogo no Brasil. No começo dos anos 1980, para cada 100 pessoas assassinadas, cerca de 40 eram vítimas de armas de fogo.

Desde 1980, o crescimento dos homicídios no país foi basicamente devido às mortes com uso de armas. Enquanto isso, as mortes por outros meios permaneceram constantes desde o início dos anos 1990.

Em 2003, o Brasil atingiu um índice de mortes por armas de fogo de 71%. O índice é o mesmo observado em 2016. A publicação sugere que o Estatuto do Desarmamento interrompeu a corrida armamentista que impulsionava as mortes violentas no país. Segundo estimativas do Atlas da Violência, se não fosse essa lei, os homicídios teriam crescido 12% além do observado. O estatuto é de 2003.

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O estudo “Balas e Vidas Perdidas - O paradoxo das armas como instrumento de segurança”, de 2017, da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (Dapp) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) chega a conclusões parecidas. O Núcleo de Segurança e Cidadania da FGV/DAPP analisou dados de homicídio por armas de fogo das duas últimas décadas.

Enquanto entre 1997 e 2003 o número absoluto de homicídios por arma de fogo cresceu na média 6,8% ao ano, a partir de 2004, quando o Estatuto do Desarmamento entra em vigor, até 2015 (último ano disponível no DATASUS), o crescimento cai para 1,9% ao ano.

No artigo “Estatuto do desarmamento: Um tiro que não saiu pela culatra”, de Glaucio Soares (cientista social) e Daniel Cerqueira (economista do Ipea), os autores chegam à conclusão de que o crescimento médio anual de pessoas assassinadas por arma de fogo antes do Estatuto do Desarmamento era mais de 15 vezes maior do que o observado depois. Se o crescimento das mortes por arma de fogo se desse na mesma velocidade que vinha tendo antes da aprovação da lei, mais 121 mil pessoas seriam mortas por arma de fogo no Brasil, entre 2004 e 2013, segundo o artigo.

Na tese de doutorado “Causas e consequências do crime no Brasil”, Cerqueira mostra que o aumento de 1% na quantidade de armas nas cidades se reflete em 2% a mais nas taxas de homicídio.

Arma de fogo em casa aumenta chances de latrocínio

Um dos argumentos usados pela equipe do governo federal para defender a flexibilização da posse de armas é o direito de o cidadão defender seu patrimônio.

Benê Barbosa concorda com a tese e cita o exemplo norte-americano. “Nos Estados Unidos, nos estados em que você teve a liberação do porte de arma, teve diminuição dos crimes de roubo e aumento nos crimes de furto. Sabendo que a pessoa pode estar armada, a tendência é que ele [suspeito] procure cometer crimes em que não entre em contato com a vítima”, diz o especialista.

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Na pesquisa “Também morre quem atira”, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) estudou os casos de latrocínio – roubo seguido de morte – registrados em 1998, antes do Estatuto do Desarmamento. Concluiu que as pessoas armadas correm risco 56% maior de morrer em um assalto. Quando a vítima está armada, há em média 2,2 mortes, 46% mais do que quando a vítima está desarmada.

Para Ivan Marques, a arma dá uma falsa sensação de segurança ao seu proprietário. “As pessoas buscam armas mais para aplacar sua sensação de medo e insegurança, mas é preciso buscar outra solução”, defende.

“Em primeiro lugar, a gente tem que se dar conta de que a gente tem políticas de segurança públicas inefetivas no país. É uma população que tem muito medo e uma população amedrontada é facilmente convencida por soluções aparentemente mais simples, como o endurecimento das políticas de segurança ou a necessidade de fazer uma defesa por conta própria”, concorda David Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Mais armas legais também pode significar mais armas ilegais

Outro ponto levantado por especialistas contrários à flexibilização da legislação sobre armas é o circuito ilegal. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 13.782 armas legais passaram para o circuito ilegal em 2017. Isso equivale a 11,5% das armas apreendidas pelas polícias no mesmo ano.

“Aproximadamente um mês das polícias retirando armas de circulação foi perdido porque as armas voltaram para as mãos de criminosos”, ilustra David Marques. “Se a gente tiver mais armas em circulação, a gente vai ter número maior dessas armas retroalimentando o circuito ilegal, potencializando a possibilidade de um crime violento”, argumenta.

Para Benê Barbosa, o argumento não faz sentido. Segundo o especialista, apesar de o Estatuto do Desarmamento ter aproximadamente 15 anos e 600 mil armas terem sido entregues em campanhas voluntárias, milhares de armas são apreendidas todos os anos e o mercado ilegal não foi desabastecido.

“O mercado ilegal não depende de comércio legal. Da mesma forma que você pode ter o celular furtado e ele ser usado dentro de uma cadeia para comandar ataques como no Ceará”, rebate.

Como é em outros países

Benê Barbosa também ressalta exemplos internacionais para defender a flexibilização da posse de armas no Brasil. “O Uruguai é o país mais armado da América Latina e tem a segunda menor taxa de homicídios da América do Sul”, argumenta.

Ele também cita exemplos como Paraguai, país onde comprar uma arma não é uma tarefa difícil, e tem números de homicídios abaixo do Brasil, e do Canadá, onde também não há tantas restrições em relação ao armamento. “Isso já é um forte indicativo de que não é simplesmente a existência da arma em uma sociedade que a torna mais violenta ou com maior índices criminais”, argumenta.

Já Ivan Marques, do Sou da Paz, tem uma visão diferente. “Temos experiências no mundo inteiro, temos estudos de universidades públicas brasileiras, institutos privados que estão cansados de demonstrar que quanto mais armas em circulação, sejam elas legais ou ilegais, mais mortes, mais enfrentamentos, mais trocas de tiro, mais acidentes, mais suicídios.”

“A questão da criminalidade não é determinada só pela quantidade de armas em circulação naquela sociedade, tem outros fatores. No caso do Brasil, especificamente, a arma é um vetor de violência, nós temos uma dificuldade grande enquanto sociedade em resolver nossos problemas de maneira não violenta”, completa.

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