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Concebida para “combater a desinformação”, a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED), do Tribunal Superior Eleitoral, é considerada o embrião de outras iniciativas do Tribunal para monitorar as eleições através do discurso de combate à desinformação. A atuação da AEED voltou aos holofotes após a revelação de novas mensagens de Eduardo Tagliaferro nas quais ele diz que temia ser preso por ordem do ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, caso contasse publicamente o que sabia.
O órgão foi criado em 2022 pelo ministro Edson Fachin, então presidente do TSE, com o alegado objetivo de combater a interferência de campanhas difamatórias nas eleições gerais e melhorar a imagem do Tribunal perante a sociedade.
A Assessoria Especial é parte de um conjunto de ações do Programa de Enfrentamento à Desinformação, lançado em agosto de 2019 com foco nas Eleições de 2020. Apesar de ter sido criada para atuar durante um período específico, a assessoria ganhou caráter permanente em agosto de 2021, por meio da Portaria TSE nº 510/2021, assinada pelo então presidente da Corte Eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso.
Nos primeiros anos, a atuação da assessoria esteve concentrada no combate à desinformação entre candidatos. Com o tempo, porém, o foco se ampliou para incluir também a proteção da própria Justiça Eleitoral. Em 2022, sob Fachin, a AEED passou a investir na capacitação de servidores e representantes das plataformas digitais, com o objetivo de aprimorar o enfrentamento à desinformação nas redes sociais.
A chegada de Alexandre de Moraes à presidência do TSE, no segundo semestre de 2022, marcou uma mudança no perfil da assessoria. A AEED passou a assumir um caráter mais investigativo, com foco na análise e no rastreamento de conteúdos considerados falsos — aproximando-se de uma atuação com viés policial.
Seus críticos dizem que o intuito dessas investigações seria criar evidências para embasar a censura de políticos, influenciadores e jornalistas por conta de opiniões, reportagens e manifestações legítimas, porém contrárias ao establishment político.
A atuação da assessoria pôde ser observada nas Aijes (Ações de Investigação Eleitoral) impetradas pelas coligações do presidente Jair Bolsonaro (PL) e do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante as últimas eleições gerais. O objetivo delas seria averiguar a existência de uma rede de disseminação de informações falsas nas campanhas adversárias.
Em outubro daquele ano, o então corregedor-geral eleitoral, ministro do TSE Benedito Gonçalves, determinou a produção de relatórios diários sobre as postagens nas redes sociais do vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro (Republicanos) e do deputado federal André Janones (Avante-MG). Na ação, Benedito incumbiu a AEED de produzir os documentos.
Muitos desses relatórios foram usados posteriormente pelo próprio Moraes em decisões no Supremo que determinaram bloqueios de perfis em redes sociais.
Órgão criado por Moraes intensificou monitoramento sobre candidatos
A partir da experiência com a AEED, em março de 2024, o TSE ampliou o monitoramento das redes sociais com a criação do Ciedde (Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia), voltado para as eleições municipais. O colegiado formulado por Moraes, então presidente da Corte, envolve a participação da Presidência, Direção-Geral e Secretaria de Comunicação do TSE, bem como da própria AEED. O centro também conta com a participação da Polícia Federal, da Anatel e do Ministério Público Federal para retirar conteúdos considerados falsos nas redes sociais.
Na época, sua criação estaria vinculada às “crescentes preocupações” do Tribunal com as novas aplicações da inteligência artificial e aos possíveis danos que tais possibilidades podem trazer ao processo eleitoral. O principal alvo seria o uso, no período eleitoral, de deepfakes — imagens e vídeos gerados por meio de inteligência artificial que podem recriar a voz e ações de pessoas sem seu consentimento.
Durante o lançamento do CIEDDE, Moraes afirmou que o órgão iria intensificar a linha adotada pelo TSE. “No Tribunal Superior Eleitoral já vínhamos neste combate e, agora, estamos dando um salto a mais na eficiência deste combate a partir do momento em que as notícias fraudulentas e as fake news foram anabolizadas pelo mau uso da inteligência artificial.”
Programa criado por Barroso fomentou órgãos de monitoramento
Tanto a AEED quanto o CIEDDE possuem origem no Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação, criado em 2019 e instituído por Barroso em 2021. O programa usa como argumento para se justificar a necessidade do combate à desinformação, em especial no pleito de 2018, quando Bolsonaro foi eleito presidente da República. Na época, o então deputado federal já criticava as urnas e afirmava que teria vencido no primeiro turno se não fossem pelos equipamentos.
Apesar de não citar o então presidente, o documento afirma que, diante do “direcionamento de notícias falsas e ataques contra a própria Justiça Eleitoral e o processo eleitoral, o Tribunal tomou medidas adicionais para enfrentar os desafios impostos pela disseminação de desinformação.”
Com as eleições municipais de 2020, o Tribunal também alegou no documento que o combate à desinformação, concentrado em períodos eleitorais, não seria suficiente para lidar com a questão.
“Em primeiro lugar, verificou-se que as campanhas de desinformação contra o processo eleitoral não se circunscrevem a períodos de campanha [...] Assim, torna-se necessária uma atuação contínua para responder às metanarrativas de fraude eleitoral, de modo a mitigar os efeitos negativos que possam produzir sobre a confiança social na lisura das eleições e nas instituições eleitorais”, sustentou o TSE.
Mensagens mostraram como perito se comunicava com outros assessores de Moraes
Mensagens trocadas entre Tagliaferro e assessores de Moraes no STF trouxeram indícios de como a AEED teria sido utilizada para monitorar críticos da Corte e do sistema eleitoral. Elas ocorreram entre agosto de 2022 e maio de 2023 e foram divulgadas pela Folha de S.Paulo em agosto do ano passado.
Elas mostravam que o gabinete do magistrado orientava informalmente a produção de relatórios sobre alvos pré-determinados. Alguns deles eram críticos do Supremo Tribunal Federal (STF) e apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. Entre os nomes citados estão os comentaristas Rodrigo Constantino e Paulo Figueiredo, a revista Oeste e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP).
A atuação de Tagliaferro era feita em coordenação com o juiz auxiliar de Moraes, Airton Vieira. Em entrevista à revista Oeste, em agosto do ano passado, ele explicou que não recebia ordens diretamente do ministro do STF, mas sim de seu assessor.
O perito disse que, quando encontrava supostas mensagens de ódio, as incluía nos documentos. As denúncias, conforme relatou, podiam ser anônimas, mas algumas teriam partido do próprio Moraes.
Ao ser questionado sobre o impacto do trabalho da AEED sobre os alvos das investigações do STF, afirmou que não teve escolha: era apenas um funcionário. Comparou sua função à de um cozinheiro que precisa seguir ordens, ainda que discorde da receita.
Órgãos criados pelo TSE apresentam risco institucional, diz analista
Para o advogado Richard Campanari, especialista em Direito Eleitoral e membro da ABRADEP, as ações recentes do Tribunal Superior Eleitoral no combate à desinformação eleitoral representam uma expansão preocupante do poder da Justiça Eleitoral sem base legal clara. Embora o discurso institucional aponte para a proteção do processo democrático, ele alerta para os riscos de arbitrariedades.
“O discurso oficial é nobre: garantir a integridade das eleições e proteger o eleitor contra manipulações informativas. No entanto, na prática, o que se observa é o surgimento de um novo campo de atuação da Justiça Eleitoral — sem amparo legal claro, sem controle externo efetivo e com um potencial preocupante de arbítrio institucional”, afirmou Campanari.
Segundo ele, a legislação vigente é bastante específica ao delimitar o poder de polícia da Justiça Eleitoral. “Os artigos 40 e 41 da Lei 9.504/97 (Lei das Eleições) delimitam o exercício desse poder às ilegalidades evidentes, flagrantes, notadamente ligadas à propaganda eleitoral e, mesmo assim, condicionadas à circunscrição territorial do juiz eleitoral competente”, explicou.
Campanari também citou a Resolução do TSE sobre propaganda na internet como um exemplo de que a atuação da Corte deveria estar limitada ao meio, e não ao conteúdo. “Ainda assim, estruturas como a AEED passaram a operar de modo a transformar qualquer conteúdo crítico ou politicamente sensível em violação à ‘integridade do processo eleitoral’, criando, por interpretação subjetiva, um novo campo de atuação para o TSE — sem a devida previsão legal”, alertou.
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