
Ouça este conteúdo
Os comitês de cultura criados pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) neste terceiro mandato podem ter sido utilizados para fins políticos para eleger aliados durante a campanha eleitoral de 2024. Gravações obtidas pelo Estadão e publicadas nesta segunda (10) apontam que alguns deles participaram da vigília ao petista no período em que esteve preso em Curitiba em meio às investigações da Operação Lava Jato.
Segundo declarações da secretária nacional de Mulheres do PT, Anne Moura, obtidas pela reportagem, essas estruturas teriam sido mobilizadas para eleger aliados em 2024 com o aval da cúpula do Ministério da Cultura (MinC). O apoio supostamente ocorreu através da instrumentalização do Programa Nacional de Comitês de Cultura (PNCC), criado em setembro de 2023 com um investimento de R$ 58,8 milhões até o fim deste ano.
A gravação, diz a apuração, foi feita pelo então presidente do Comitê do Amazonas, Marcos Rodrigues, que posteriormente rompeu politicamente com Anne Moura. O material aponta um suposto direcionamento político dentro do programa.
À Gazeta do Povo ainda pela manhã, o MinC disse desconhecer qualquer conversa neste sentido e que Anne Moura “não é membro do Comitê de Cultura do Amazonas, nunca integrou sua equipe e não participou de qualquer processo relacionado ao Ministério da Cultura ou à seleção do edital de projetos”. Já a secretária petista disse, em uma postagem nas redes sociais à tarde, desconhecer as gravações e que nunca conversou com Rodrigues "no sentido de interferir na condução administrativa do Comitê de Cultura" (veja as respostas na íntegra mais abaixo).
Na conversa obtida pelo Estadão, Anne Moura teria exigido que a estrutura do comitê fosse utilizada para impulsionar sua candidatura a vereadora de Manaus, eleição na qual foi derrotada. Segundo ela, a falta de engajamento político do comitê foi considerada “um absurdo” por Roberta Martins, secretária do MinC responsável pelo PNCC.
“Ela [Roberta] tava na sede do PT, na reunião e perguntou: ‘o comitê tá te ajudando? Porque nos outros lugares está tudo ajudando’. Porque eu fui pedir dinheiro também, tô pedindo ajuda para ganhar a eleição. Aí ela disse: o comitê tá te ajudando com alguma coisa nas agendas, nas atividades? O comitê não pode te dar dinheiro, mas eles podem promover atividade para te ajudar”, disse Anne em uma das gravações.
A secretária petista também criticou a escolha de artistas para atividades sem um alinhamento político prévio. Ela destacou que levou a preocupação ao secretário-executivo do MinC, Márcio Tavares, o número dois da ministra Margareth Menezes.
No Amazonas, o governo selecionou o Instituto de Articulação de Juventude da Amazônia (Iaja) para coordenar as ações culturais, entidade fundada por Anne Moura e que tem como um dos diretores o militante petista Ruan Octávio da Silva Rodrigues, aliado dela. O instituto recebeu R$ 1,9 milhão para atuar na gestão do comitê.
“Quero que tu diga da tua boca que fui eu que vim aqui pedir para ser aprovado o Iaja. Eu quero que você fale para eles lá. Porque as pessoas estão o tempo todo dizendo que não foi [...] Ela disse: ‘Isso é um absurdo, Anne”, revela outro trecho.
A discussão também incluiu ameaças de intervenção no comitê cultural do Amazonas devido à presença de André Guimarães, assessor de projetos e militante do PSOL, além da participação da ex-candidata Vanda Witoto (Rede) em um ato do comitê. Ambas, diz a apuração, disputavam parte do mesmo eleitorado na eleição municipal.
Outro trecho das gravações obtidas pelo Estadão mostra uma tentativa de retribuir aliados políticos do PT que apoiaram Lula durante a prisão em Curitiba.
“Quem foi lá para frente da prisão gritar de manhã, de tarde e de noite para defender o Lula fomos nós. Nós que sofremos sendo chamados de ‘ladrão’, todo mundo virou as costas para nós nos movimentos sociais. E a gente lá ‘somos do PT, vamos resistir, vamos não sei o quê…’. E agora, chega na parte boa, a gente vai ficar olhando as coisas acontecendo? Não vamos ter nenhuma opinião política nesse processo? Tudo tá de pé pela política. Só tem comitê porque tem Lula. E só tem Lula porque tem base, que somos nós”, afirmou Anne Moura.
Apesar das queixas da secretária sobre falta de apoio, o comitê amazonense compartilhou publicações de campanha dela nas redes sociais, descumprindo uma diretriz do MinC que vedava promoção política. A apuração aponta, ainda, que Anne chegou a receber R$ 428,4 mil do PT para a campanha, e obteve 2.399 votos, mas não foi eleita por conta da somatória necessária na chapa proporcional.
O ministério afirmou em nota que as alegações sobre a participação de servidores da pasta são “inverídicas” e que o comitê do Amazonas teve as atividades suspensas e recursos bloqueados temporariamente para apuração de possíveis irregularidades.
“A Secretária dos Comitês de Cultura do MinC, Roberta Martins, desconhece as alegações pois a conversa nunca ocorreu. Portanto, as informações fornecidas são todas inverídicas”, disse o MinC em nota à Gazeta do Povo.
Já Anne disse ao Estadão que foi vítima de calúnia e difamação e que os questionamentos feitos por ela “podem estar sendo reproduzidos fora de seu contexto”. “Estou muito tranquila e à vontade para prestar quaisquer tipos de esclarecimentos aos órgãos competentes; tenho mais de 20 anos dedicados à luta do povo e nunca estive ligada a prática de nenhuma ilicitude”, completou.
"O ex-presidente [Marcos Rodrigues] tratou o projeto de forma personalista e inconsequente, tomando decisões sem consultar os demais membros do IAJA e do próprio Comitê de Cultura, não se reportou ao Conselho Fiscal, sendo por isso questionado pelos associados e por mim, particularmente, sem que em nenhum momento tenha reivindicado qualquer tipo de benefício pessoal e muito menos ilegal", completou Anne na nota nas redes sociais.
VEJA TAMBÉM:
Veja abaixo a resposta na íntegra do Ministério da Cultura:
Em resposta às supostas declarações realizadas em reunião privada pela secretária nacional de Mulheres do PT, Anne Moura, sobre o Comitê de Cultura do Amazonas, o Ministério da Cultura (MinC) informa:
Falta de “ajuda” ao Comitê
A Secretária dos Comitês de Cultura do MinC, Roberta Martins, desconhece as alegações pois a conversa nunca ocorreu. Portanto, as informações fornecidas são todas inverídicas. Anne Moura não é membro do Comitê de Cultura do Amazonas, nunca integrou sua equipe e não participou de qualquer processo relacionado ao Ministério da Cultura ou à seleção do edital de projetos. A secretária Roberta Martins informa, ainda, que adotará as providências jurídicas cabíveis em face dos envolvidos na imputação dos referidos fatos.
Sobre a afirmação de que “a gente faz política”
Os comitês foram instruídos pelo MinC, de forma clara e expressa, a não se envolver com processos e campanhas eleitorais. A CONJUR/AGU e a Secretaria dos Comitês de Cultura do MinC promoveram seminários com as OSCs para informar acerca das vedações relativas ao período eleitoral. Prova disso é que na suposta declaração de Anne Moura que foi gravada, ela reclama justamente de uma falta de apoio do Comitê de Cultura do Amazonas à sua campanha eleitoral.
Além disso, os Comitês são constantemente incentivados a ampliar o perfil e a diversidade dos grupos culturais com os quais interagem. A composição dos comitês é plural e participativa, com representantes de diferentes segmentos culturais e cidadãos, garantindo um processo democrático e transparente.
Vale ressaltar, ainda, que o MinC repudia a tentativa de envolver o presidente Lula e a senhora Janja Lula da Silva a partir da criminalização do Programa Nacional dos Comitês de Cultura, que tem como objetivo ampliar o acesso às políticas públicas de cultura em todo o país, fortalecendo a democracia e a participação popular e cidadã no âmbito das políticas socioculturais e do Sistema Nacional de Cultura (SNC).
Providências tomadas
Ao tomar conhecimento de tensões políticas no Comitê de Cultura do Amazonas, o Ministério da Cultura determinou a imediata apuração sobre a gestão de recursos públicos. A partir da primeira semana de fevereiro, o MinC iniciou uma investigação sobre a execução do plano de trabalho da parceria, incluindo a análise técnica das atividades realizadas e a prestação de contas preliminar. A análise preliminar das denúncias e da execução das ações no estado resultou na recomendação de suspensão temporária das atividades e no bloqueio de recursos enquanto a apuração está em andamento. Até o momento não foram identificadas irregularidades, mas a apuração prossegue. Medidas serão implementadas nos próximos dias com o objetivo de assegurar a transparência e a boa gestão dos recursos públicos, além de garantir que as atividades do comitê ocorram de forma impessoal, eficaz e eficiente.
Sobre um suposto favorecimento de “artistas parceiros”
O MinC e a Secretaria dos Comitês de Cultura não exercem qualquer ingerência na escolha de artistas ou profissionais contratados para os projetos do Programa Nacional de Comitês de Cultura (PNCC). A seleção dos grupos culturais para os projetos é realizada de forma autônoma pelos comitês estaduais, respeitando a diversidade cultural de cada território e as especificidades regionais.
A Lei n. 13.019/2014, regulamentada pelo Decreto n. 8.726/2016, deixa evidente o aspecto de autonomia e natureza privada, ao indicar que as contratações realizadas pelas OSCs seguirão métodos usualmente utilizados pelo setor privado, e estabelecer a responsabilidade exclusiva da OSC pelo gerenciamento administrativo e financeiro dos recursos recebidos, tais regras são refletidas nas cláusulas do Termo de Colaboração.
Às relações estabelecidas pela OSC com particulares, em regra, não se aplicam as restrições típicas de direito público, devendo-se adotar, nesse âmbito, os métodos usualmente utilizados pelo setor privado, cuja variedade, formato e pertinência estão no âmbito da autonomia da organização.
Sobre a legislação e a atuação das OSCs
O Tribunal de Contas da União (TCU), em seu Acórdão 2358/2024, reconheceu que, pela legislação afeta ao PNCC e pelo edital de convocação, não há óbice legal para casos em que a proposta vencedora em chamamento público do PNCC pertença à ONG dirigida por um candidato a cargo político ou pessoa filiada a qualquer partido político, desde que não envolvam membros de Poder ou servidores públicos responsáveis pelo edital. O modelo do PNCC fortalece o controle social e a fiscalização cidadã, afastando riscos de instrumentalização partidária.
O Ministério da Cultura reitera seu compromisso com a promoção de uma política cultural democrática, transparente e voltada à participação popular, e continua atuando para assegurar que o Comitê de Cultura do Amazonas opere em conformidade com os princípios da boa gestão pública.
Veja abaixo a resposta na íntegra de Anne Moura:
Venho a público esclarecer declarações distorcidas com a única finalidade de macular a minha imagem perante a opinião pública, desmerecendo minha vida pública voltada às causas sociais e luta por dias melhores para a população brasileira, em especial a do Amazonas, estado onde nasci e onde atuo intensamente em causas direcionadas para grupos prioritários.
O Iaja é uma instituição, que há mais de 10 anos, executa inúmeros projetos sem nunca terem sido apontada conduta ou prestação de contas irregulares. Esse histórico de ações contínuas e eficientes a credenciou para concorrer ao edital dos Comitês de Cultura.
Os Comitês de Cultura têm desempenhado um papel importante na qualificação, na divulgação e no apoio a projetos de trabalhadores.
Desconheço, a transcrição de gravação onde supostamente converso com o ex-presidente do Iaja. Reuni com este senhor, mas nunca no sentido de interferir na condução administrativa do Comitê de Cultura.
1) Muitas pessoas colaboraram para a construção da política pública que resultou na criação dos Comitês. No caso do Amazonas, artistas comprometidos com o acesso democrático da população às atividades e bens culturais. Esses atores, independentemente de preferência política ou partidária, deveriam, a nosso ver, ter protagonismo nas atividades do Comitê. Isso foi exposto e não imposto como foi ventilado pelo ex-dirigente;
2) O ex-presidente tratou o projeto de forma personalista e inconsequente, tomando decisões sem consultar os demais membros do Iaja e do próprio Comitê de Cultura, não se reportou ao Conselho Fiscal, sendo por isso questionado pelos associados e por mim, particularmente, sem que em nenhum momento tenha reivindicado qualquer tipo de benefício pessoal e muito menos ilegal;
3) Esse tipo de comportamento foi apenas um dos motivos que levaram o ex-presidente a ser destituído do cargo, além de não ter prestado contas ao Conselho Fiscal e ter acumulado denúncias de assédio moral a membros associados e colaboradores de projetos, fatos registrados em boletins de ocorrência e em procedimento interno que resultou em sua exclusão.
Tenho mais de 20 anos dedicados à luta do provo e nunca estive ligada a prática de nenhuma ilicitude. Adotarei os caminhos legais para comprovar a lisura de meus atos e de cobrar a punição para pessoas que estão descompromissadas com a verdade e focadas apenas em projetos pessoais de poder.








