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O Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, levou gerações para construir uma reputação de neutralidade baseada nos princípios da resolução pacífica de conflitos, da não intervenção em assuntos internos de outros países e no multilateralismo. Mas isso mudou durante os governos do PT com a criação de facções na pasta e polêmicos alinhamentos ideológicos internacionais, que vieram à tona durante o atual mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo analistas, os danos à imagem internacional do Brasil serão difíceis de reparar.
O Brasil era em geral classificado por analistas internacionais como um "país pêndulo". Ou seja, não tinha alinhamento diplomático automático com nenhuma nação e aderia a políticas e acordos que fossem mais favoráveis no momento. A decisão desta semana do presidente americano Donald Trump de impor uma das mais altas tarifas de comércio ao Brasil mostra que, independente do discurso que o governo Lula adote, o país não é mais visto como neutro no cenário internacional.
"Historicamente, o Brasil buscava manter uma postura de neutralidade pragmática e de equilíbrio entre as grandes potências, evitando tomar lados em disputas geopolíticas que envolvessem interesses diretos de blocos como Estados Unidos, China ou Rússia. Essa abordagem era fundamental para garantir ao país uma posição de interlocutor respeitado e confiável em fóruns multilaterais e em negociações internacionais", afirma o doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP) Luiz Augusto Módolo.
Apesar de não possuir capacidades militares nem uma economia grande o suficiente para influir na geopolítica, o país sempre se destacou pelo chamado soft power: a habilidade de exercer influência internacional sem coerção, por meio de cultura e de uma política externa de neutralidade.
No século XX, o Brasil participou da mediação da guerra do Chaco, entre Paraguai e Bolívia, da questão Letícia, entre Peru e Colômbia, e do conflito de terras entre Peru e Equador. Nesses casos, o país usou sua importância na América do Sul para enviar diplomatas mediadores.
Em 2004, já sob o governo do Partido dos Trabalhadores, o Brasil foi escolhido para liderar militarmente a missão de paz da ONU no Haiti por ser visto como confiável e neutro para conduzir uma operação militar próximo da fronteira americana. Em 2013, o país foi o escolhido para liderar a missão de pacificação da República Democrática do Congo por sua neutralidade ter sido reconhecida por nações africanas que estavam em conflito.
A missão de paz da ONU no Haiti foi o primeiro passo de uma política externa de Lula que passou a ser orientada para tornar o Brasil mais relevante no cenário internacional. Um dos objetivos era conseguir uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU. Além de Lula, um grande protagonista desse esforço era seu então chanceler Celso Amorim, um diplomata de carreira que abraçou a ideologia lulista.
Relatórios secretos redigidos por diplomatas americanos vazados em 2010 pelo Wikileaks constataram que Amorim "estava farto do comércio internacional", objetivo que norteou a diplomacia em governos anteriores, e decidiu apoiar pautas políticas internacionais.
Segundo diplomatas que pediram para não ter os nomes revelados, duas facções se formaram entre os diplomatas do Itamaraty: uma formada pelos servidores que haviam ocupado embaixadas no governo de Fernando Henrique Cardoso e outra de nomes que se fortaleceram na administração petista.
Amorim e seus aliados passaram a adotar uma política de antagonismo a Israel e apoio ao aiatolá Ali Khamenei, do Irã. Segundo documentos diplomáticos vazados pelo Wikileaks, o Brasil passou a dificultar iniciativas americanas no Oriente Médio.
Entre essas manobras estavam ações diplomáticas na ONU para impedir a inclusão do nome do Irã em resoluções do Conselho de Segurança contra a proliferação nuclear e pressão para impedir a emissão de mandados de busca internacionais contra iranianos suspeitos de envolvimento no atentado terrorista contra a Associação Mutual Israelita de Buenos Aires, que causou dezenas de mortes, em 1994, na Argentina.
Essa ação culminou com uma tentativa de Lula de mediar, em parceria com a Turquia, um acordo nuclear com o Irã em 2010. O governo do presidente americano Barack Obama entendeu que tal negociação não impediria o Irã de continuar a desenvolver a tecnologia da bomba nuclear e usou sua força geopolítica para impedir a conclusão das negociações, mas depois firmou um acordo não muito diferente com Teerã - que acabou sendo cancelado pelo presidente Donald Trump em seu primeiro mandato.
Brasil ganhou de Israel apelido de "anão diplomático" no governo Dilma
Sob o pretexto de apoiar a solução de dois Estados para o conflito histórico entre palestinos e israelenses, o governo do PT foi aos poucos aumentando as críticas a Israel e evitando mencionar a violência cometida por terroristas na Faixa de Gaza. Em 2014, no governo Dilma Rousseff, o Brasil convocou para consultas seu embaixador em Tel Aviv como forma de protesto contra uma operação israelense na Faixa de Gaza após um ataque a seus soldados.
Foi nesse episódio que o Brasil ganhou o apelido depreciativo de "anão diplomático", que sempre é relembrado quando o Itamaraty ou Lula cometem erros na política externa. O termo foi cunhado pelo porta-voz da chancelaria israelense Yigal Palmor, que afirmou na ocasião: "Essa [convocação] é uma demonstração lamentável de porque o Brasil, um gigante econômico e cultural, continua a ser um anão diplomático".
Na época, em parte por apoio do Partido Democrata no governo dos EUA e a uma conjuntura econômica muito favorável de aumento das exportações para a China, o Brasil era visto como um país em ascensão.
Na América do Sul, o PT intensificava sua participação no Foro de São Paulo, desde a criação do grupo na década de 1990 por Lula, pelo ditador cubano Fidel Castro (1926-2016) e outros líderes de esquerda. O Foro de São Paulo é uma reunião de partidos de esquerda que se auxiliam mutuamente e foi importante para o apoio à consolidação da ditadura de Hugo Chávez na Venezuela. Lula apoiava abertamente as eleições que o líder autoritário promovia, sempre vencia e cuja transparência era contestada internacionalmente.
Lula radicaliza em ideologia na política externa em terceiro mandato
O apoio à Venezuela marcou a consolidação do abandono da neutralidade da política externa brasileira no terceiro mandato de Lula. Uma de suas primeiras ações em 2023 foi receber no Brasil Nicolás Maduro e afirmar que a ditadura na Venezuela era apenas uma "narrativa".
O governo brasileiro tentou se colocar como mediador no final de 2023 frente à ameaça de Maduro de invadir a vizinha Guiana para anexar a região de Essequibo, rica em petróleo. Mesmo tentando evitar críticas diretas ao ditador, Lula falhou no papel de conciliação e acabou sofrendo ataques diplomáticos de Maduro.
O presidente brasileiro também vinha se posicionando a favor do ditador Vladimir Putin e relativizando a invasão militar russa na Ucrânia em 2022. Ele chegou a visitar Moscou para participar do Dia da Vitória na Segunda Guerra, em 9 de maio, ao lado de ditadores e líderes autocráticos e ignorou as comemorações das democracias ocidentais, celebradas em 8 de maio.
Segundo o cientista político e analista de risco político Rócio Barreto, a decisão de Lula de criticar a Otan (aliança militar ocidental) e alegar que a Ucrânia foi corresponsável pelo conflito ao ter sido invadida "contrariou a maioria das democracias ocidentais".
Desde os ataques terroristas do Hamas a Israel em 2023, Lula também adotou um tom contundente em relação a Israel e ameno ao falar de grupos terroristas palestinos e libaneses. O mesmo padrão foi adotado nos bombardeios entre Irã e Israel neste ano.
De acordo com Barreto, a diplomacia de Lula foi mais conciliatória nos dois primeiros mandatos. Mas o presidente "partiu para o confronto" diplomático em seu terceiro mandato.
O episódio mais recente, que ajudou a deflagrar a taxação de 50% nas exportações estabelecida nesta quarta-feira (9) por Donald Trump, foi a presidência brasileira da cúpula dos Brics (bloco diplomático originalmente formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
O Brasil vinha liderando os esforços do grupo para criar um sistema de pagamentos entre os países-membros, com o objetivo de substituir o dólar americano como moeda de comércio internacional. Esse sistema interessa à Rússia, como forma de evadir sanções internacionais, e à China, que deseja enfraquecer o dólar para abrir espaço para sua moeda, o yuan.
Na Declaração do Rio de Janeiro, o documento final da cúpula, a intenção de criar alternativas de pagamento em paralelo ao dólar foi formalizada, assim como críticas indiretas à política de Donald Trump de aumentar tarifas comerciais unilateralmente. O americano usa as tarifas como forma de pressionar países rivais e aliados para melhorar as relações de comércio com os Estados Unidos. No dia da divulgação do documento, Trump iniciou a atual onda de críticas públicas a Lula.
Para o cientista político Elton Gomes, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), o atual governo promove um “alinhamento deliberado com o bloco sino-russo” e repete no plano internacional a mesma lógica de polarização usada na política doméstica.
“Existem algumas linhas diretivas que são basilares na diplomacia brasileira: neutralidade, multilateralismo, relações com múltiplos parceiros e, principalmente, a centralidade do comércio exterior. Porém, nos últimos anos, especialmente no governo atual, houve um distanciamento profundo dessas tradições”, afirma.
Segundo Módolo, o Brasil tem assumindo posições que são percebidas como hostis por potências tradicionais, como tem feito agora os Estados Unidos. O país passou a ser visto, segundo ele, como um "aliado de regimes que desafiam a hegemonia do dólar", governado por um presidente "inimigo de Israel", em um país que pratica "desaforos contra empresas americanas, especialmente de tecnologia", além de atacar valores caros aos EUA, como a liberdade de expressão.
“O preço dessa nova postura recairá sobre o cidadão comum, que sentirá os impactos econômicos de possíveis sanções ou barreiras comerciais sem compreender as razões diplomáticas por trás disso”, diz.
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Relação de Lula com os EUA piorou desde 2023
O analista Rócio Barreto observa que, entre 2003 e 2010, Lula mantinha boas relações tanto com George W. Bush, do Partido Republicano, quanto com Barack Obama, do Partido Democrata, mesmo criticando abertamente a guerra do Iraque.
Segundo ele, agora o cenário é outro. “No Lula 3, o enfrentamento é bem mais forte e corre o risco de ter um certo isolamento com o Ocidente”, alerta. “No governo Lula 1 e 2, ele sentava mais à mesa e resolvia as questões de forma mais diplomática. Hoje, o governo Lula 3 está indo bem para o enfrentamento, sem sentar, ouvir opinião e fazer mais conversas.”
Essa mudança de postura, segundo ele, não se limita à arena internacional: “A gente vê isso até mesmo com o Congresso Nacional. O governo Lula 1 e 2 recebia todos os congressistas, conversava com todos e chegava a um acordo. Diferentemente do governo Dilma, que levou para o enfrentamento no segundo mandato e foi penalizada por isso.”
De acordo com Barreto, a relação de Lula com os EUA se deteriorou com a eleição de Trump para seu segundo mandato. Parte da explicação está na proximidade de Bolsonaro a Trump.
Ao comparar Lula com Jair Bolsonaro, o cientista político Elton Gomes destaca que ambos ideologizaram a política externa, ainda que em direções opostas. “Bolsonaro tentou se alinhar ao Ocidente, com declarações efusivas a Israel e ao então presidente Trump. Já Lula faz o oposto, com um alinhamento ideológico total com o bloco sino-russo”, disse.
No entanto, Gomes ressalta uma diferença de postura administrativa. “No governo Bolsonaro, após um desgaste com a China e com outros parceiros, houve correção de rota. O chanceler Ernesto Araújo foi substituído por um diplomata técnico, Carlos França, que resgatou a tradição [de neutralidade]. No governo Lula, não há sinais de que isso vá acontecer.”
Analista diz que Brasil não abandonou totalmente a neutralidade
Por outro lado, Luciano da Rosa Muñoz, doutor em Relações Internacionais e professor do UniCeub, avalia que o Brasil não abandonou a sua “tradição de neutralidade diplomática, mas enfrenta dificuldades inéditas para mantê-la, diante de um cenário internacional mais polarizado e hostil à atuação de mediadores".
Ele se refere a uma tendência mundial em que a eleição de Trump nos Estados Unidos enfraqueceu o multilateralismo, onde as nações se reuniam em organismos internacionais para definir normas e resolver conflitos, e fortaleceu políticas mais focadas no personalismo.
“Nos anos 2000, com Lula e Obama, havia uma conjuntura internacional favorável. O multilateralismo funcionava melhor, a economia era mais estável e havia menos conflitos globais. Hoje, o mundo é muito mais conflitado, polarizado e imprevisível”, diz.
Entre os novos obstáculos, ele cita a guerra entre Rússia e Ucrânia, o agravamento do conflito no Oriente Médio, a guerra inédita entre Israel e Irã, e a própria ascensão da China como potência rival dos EUA. “Hoje o mundo é muito mais conflituoso do que naquela época. Isso dificulta a atuação do Brasil como mediador”, analisa.
Brasil precisa de política externa de Estado que não mude com os governos, dizem analistas
Para terem relações internacionais mais consistentes, os países precisam ter políticas de Estado sólidas, que não mudem a cada governo e continuem sendo construídas independentemente do governante, segundo o analista de riscos Nelson Ricardo Fernandes Silva, da consultoria ARP Risk.
"A gente não tem visto isso no Brasil, as mudanças são muito abruptas e agora outros países, como os Estados Unidos, também começam a ter essas mudanças. Embora os Estados Unidos tenham uma política de Estado muito mais forte que a nossa, com objetivos muito mais claros. A política de Estado previne de você ficar dando um passo para frente e dois para trás", disse.
Segundo ele, o Brasil não tem metas claras de médio e longo prazo e as políticas são construídas ao desejo de cada presidente.
Imagem do Brasil não será reparada no governo Lula
Os analistas ouvidos pela reportagem concordam que o governo Lula não vai conseguir reverter a imagem de que escolheu um lado em detrimento da neutralidade.
“A tradição de neutralidade e equilíbrio, que levou décadas para ser construída na diplomacia brasileira, foi jogada fora em poucos anos por escolhas ideológicas e confrontos desnecessários”.
Ele reforça que o país passou a ser percebido como instável, imprevisível e até hostil por atores relevantes do cenário internacional e que reconstruir essa credibilidade exigirá tempo, coerência e uma política externa profissional, dissociada de paixões internas.
Para Muñoz, a tendência é de agravamento. “A imagem de neutralidade não vai ser recuperada até o final do governo Lula. Pelo contrário, a tendência é de piora”, projeta.
Gomes afirma que qualquer mudança só ocorrerá em um próximo governo. “O Brasil tem uma herança diplomática de multilateralismo e pragmatismo, mas só será possível recuperar essa imagem em um próximo governo — ou no limite, se a crise se agravar a tal ponto que obrigue uma reavaliação interna forçada.”









