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Imagens em vídeo e conversas telefônicas interceptadas pela polícia mostram que membros de facções criminosas do Rio de Janeiro começaram a usar armas, táticas e equipamentos que se popularizaram na guerra da Ucrânia. Entre esses recursos estão drones que lançam granadas e supressores de ruído de armas. O uso dos drones ainda é feito de forma rudimentar e se assemelha a experimentações feitas pelos soldados na Europa nos primeiros meses da guerra, época em que esses aparelhos ainda não eram empregados de forma massiva no campo de batalha.
Os primeiros indícios do uso de drones em táticas de combate no Rio surgiram no meio do ano passado. Um deles foi um vídeo identificado pela polícia que mostra um drone lançando uma granada sobre supostos traficantes do Comando Vermelho no Morro do Quitungo. O ataque teria sido realizado por criminosos do Terceiro Comando Puro, que operam no Complexo de Israel. Ambos os locais são favelas na Baixada Fluminense.
A Gazeta do Povo conversou com policiais civis do Rio que atuam em regiões controladas pelo tráfico, que pediram para não ter os nomes revelados. Eles confirmaram que há evidências de que criminosos usam drones para atacar rivais, monitorar a comunidade e a movimentação da polícia.
Para o antropólogo, especialista em segurança pública e capitão da reserva do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio) Paulo Storani, "a utilização de tecnologia nova na atividade criminosa não é uma novidade". Ele diz que as práticas usadas no Rio remetem às táticas utilizadas na guerra na Ucrânia e podem estar sendo copiadas por criminosos que assistem a videos gravados por combatentes na frente de batalha, que são amplamente difundidos nas redes sociais.
“Esse modelo foi copiado do que está acontecendo no conflito entre Russia e Ucrânia. Vídeos foram compartilhados e ainda são compartilhados de militares nesse conflito sendo atingidos por lançamento de dispositivos explosivos que detonam por percussão, mas são liberados a comando de controle remoto”, disse o analista referindo-se ao mecanismo de liberação de granadas em drones.
Essa foi uma das primeiras táticas envolvendo drones usadas na guerra da Ucrânia. Os militares tinham acesso a pequenos drones comuns, que em contextos civis são usados para filmagens ou recreação.
Para transformá-los em armas, colocavam uma granada de mão dentro de um copo descartável e o prendiam com um gancho no drone. Em seguida, retiravam o pino da granada e decolavam o aparelho. A granada não explodia imediatamente porque sua alça de acionamento ficava presa dentro do copo. Quando o drone sobrevoava o alvo, seu operador fazia uma manobra brusca e o copo com a granada se soltava do gancho. Ao atingir o solo, o copo se quebrava, a alça era liberada e a granada era acionada.
O poder de destruição da engenhoca era bastante limitado. Por isso, esses drones eram usados para atingir soldados parados em trincheiras, segundo disse à reportagem um militar especialista em dinamitação que lutou na Ucrânia e pediu para não ter o nome revelado.
Esses drones não foram projetados para fins militares e são classificados como de categoria 1 pelo Exército no Brasil. Eles têm o tamanho aproximado de uma bola de futebol e podem carregar pequenas cargas, como uma granada de mão, que pesa cerca de 400 gramas. Eles podem ser comprados por qualquer pessoa, até pela internet, na maioria dos países. São diferentes de drones do tamanho de aeronaves, que carregam mísseis e eram vistos em imagens das operações militares americanas no Oriente Médio - são considerados de categorias 3 e 4, ou seja equipamentos militares pesados.
Os indícios levantados pela polícia no Rio mostram que até o momento a ação dos bandidos é muito rudimentar e se assemelha aos primeiros experimentos com drones feitos na guerra da Ucrânia em 2022. Ou seja, os drones não são importados da Europa. Eles podem ser obtidos legalmente pelos criminosos no Brasil e combinados com armamentos contrabandeados de países como o Paraguai.
Após os primeiros meses da guerra na Ucrânia, a operação de drones começou a ficar mais sofisticada e letal. Foram criados mecanismos automáticos de liberação das granadas e os militares dinamitadores desenvolveram pequenas ogivas para substituir as granadas de mão. Essas bombas passaram então a ser capazes de matar combatentes e destruir alguns tipos de carros blindados.
As evidências obtidas pela polícia fluminense mostram que os criminosos brasileiros ainda não passaram para essa segunda fase da tecnologia. Eles ainda lançam granadas de mão ou artefatos explosivos de forma pouco eficiente contra seus alvos, em geral outros traficantes. Eles também usam os drones majoritariamente para observar a movimentação de seus rivais e da polícia e não para o ataque.
Nos campos de batalha europeus, as táticas de guerra e os drones continuaram avançando. Drones chamados de hexacópteros, que são empregados comercialmente no Brasil para fazer filmagens ou pulverizar colheitas, vêm sendo usados para levar até quinze quilos de explosivo militar e detonar casas matas e fortificações. Na Ucrânia, são conhecidos como "Baba Yaga" (nome de uma bruxa do folclore eslavo).
Em tese, os traficantes do Brasil poderiam ter acesso a esses drones, mas lhes faltaria o explosivo militar e a mão de obra com conhecimento para fazer a adaptação das cargas explosivas e detonadores.
O mesmo acontece com os drones FPV (sigla em inglês para visão de primeira pessoa) ou kamikaze, que representam hoje a principal forma de uso de drones no conflito europeu. Esses drones também são de uso comercial (inclusive, são vendidos no Brasil), mas diferem dos drones comuns pela maior velocidade de voo, transmissão de dados e capacidade de manobra aérea. São conhecidos como drones de corrida e comprados como hobby no meio civil.
Na Ucrânia, eles são equipados com cargas de cinco a sete quilos de explosivo militar. Ao invés de lançarem bombas, eles se chocam e explodem com precisão em alvos que podem ser tanto combatentes como tanques pesados. Mesmo levando menos explosivos que os "Baba Yaga", os FPV podem atingir alvos em movimento, entrar em escotilhas de blindados ou atingir os depósitos de munição dos tanques.
O governo ucraniano produz cerca de dois milhões de drones por ano, segundo dados da BBC. Com isso tem conseguido retardar o avanço russo frente à corrente limitação da quantidade de munições de artilharia comum.
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Mensagens interceptadas pela polícia mostram interesse de líder de facção por drones lançadores de granadas
Não há indícios de que facções criminosas brasileiras já tenham utilizado ou tentado utilizar drones FPV kamikazes em nenhuma ação no Brasil. Se isso ocorresse, carros blindados como o Caveirão, da Polícia Militar, teriam que começar a operar com dispositivos de guerra eletrônica, que embaralham a transmissão de dados por ondas de rádio, como já ocorre na guerra.
Trocas de mensagens entre criminosos interceptadas pela polícia mostraram um dos líderes do TCP, Álvaro Malaquias Rosa, conhecido como Peixão, negociando com um armeiro a compra de drones com capacidade de lançar granadas, em julho de 2024.
Nas mensagens, o criminoso relata ao armeiro o resultado da utilização dos drones fornecidos. "Explodi ele lá também essa noite, joguei três bombas. Conseguimos acertar dois, machucou dois. Na verdade, joguei quatro, uma não explodiu e três explodiram. Que bagulho maneiro", diz uma das mensagens atribuídas a Peixão, segundo reportagem do jornal O Globo. Segundo o jornal, o objetivo do traficante seria assassinar um líder do Comando Vermelho.
O armeiro foi preso posteriormente ao tentar receber pelo correio um aparelho eletrônico usado para embaralhar sinais de rádio de drones.
“A situação é muito complexa. As pessoas ainda não estão atentas para a gravidade da situação que nós nos encontramos hoje, e é crescente”, afirmou Storani.
Policiais suspeitam que criminosos começaram a usar supressores de ruído em suas armas
Além dos drones, criminosos de facções do Rio também teriam adotado uma outra tática de guerra: o uso de supressores de ruído instalados nos canos de fuzis. O dispositivo é similar ao chamado "silenciador" usado em pistolas, muito comum em filmes de espiões. Não é possível silenciar um tiro de fuzil, mas os supressores diminuem a quantidade de ruído produzida pelo disparo desse tipo de arma. Com menos ruído, fica mais fácil para um atirador disparar sem ser descoberto pelo inimigo.
"A gente não ouvia barulhos de tiros e de repente via os tiros batendo na parede", relatou à Gazeta do Povo um policial familiarizado com a situação. Mas não há apreensões sistemáticas desse tipo de armamento e não é possível saber se seu uso é esporádico ou se vem se tornando prática entre as facções criminosas.
Na guerra da Ucrânia esse tipo de equipamento foi inicialmente produzido em oficinas comuns equipadas de tornos e prensas e distribuído ou vendido para os combatentes, assim como acontecia com coletes à prova de balas rudimentares. Sua produção é relativamente simples, mas os policiais ouvidos pela reportagem não souberam dizer se eles são feitos no Brasil ou trazidos para o país clandestinamente.
Debate sobre uso de drones por criminosos chega ao Legislativo
O uso de drones por criminosos vem sendo debatido na polícia e na Força Aérea. A ameaça já foi tema de audiências públicas em setembro do ano passado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e na Câmara dos Deputados, em Brasília, em novembro. As audiências reuniram policiais, militares, deputados e especialistas e a principal preocupação dos presentes era a busca por “contramedidas” para frear os delitos cometidos pelas facções.
No Rio, o secretário da Segurança, Victor Santos, confirmou a existência de investigações, mas declarou que não há comprovações de que drones tenham eficácia no lançamento de granadas.
“Nós não temos hoje, no Estado do Rio, um laudo pericial que comprove a eficiência de drones para lançamentos de artefatos explosivos. O que existe é uma investigação na Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos, iniciada após a 38ª DP (Brás de Pina) apreender um drone lança-granadas que parece ser o mesmo filmado por uma moradora do Quitungo”, declarou.
A reportagem da Gazeta do Povo entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro e com a Força Aérea Brasileira para se manifestarem sobre o tema, mas não houve retorno até o fechamento desta matéria.
Na tentativa de apresentar medidas para o combate do uso de drones para atos ilícitos, Jeter Gonçalves Quaresma, coordenador da Coordenadoria de Veículos Aéreos não Tripulados do Gabinete se Segurança Institucional do governo do Rio, sugeriu a compra armamentos antidrone.
“Há sistemas modulares, que interferem nas radiofrequências. Eles conseguem rastrear qualquer drone dentro de um determinado raio, identificando onde está o aparelho e a localização de quem está controlando o rádio de controle. Também conseguimos saber o local para onde o drone vai retornar”, disse.
Ele fez referência a dispositivos conhecidos como jammers (embaralhador, em inglês), uma arma de guerra eletrônica que corta a conexão do drone com seu operador. Os participantes da audiência então debateram a possibilidade do dispositivo afetar voos de helicópteros e até aviões.
“O jammer interfere na radiofrequência, mas ele não interrompe o funcionamento só do drone para o qual se planeja uma contramedida. Devido ao alcance, pode interferir em outros sistemas, como telefones e aeronaves tripuladas. É importante lembrar que nenhum desses dispositivos captura o drone, mas interfere na comunicação dele com o controle. Com ele, é possível fazer o drone pousar, por exemplo”, disse.
Em Brasília, os debates avançaram menos na Câmara dos Deputados e as autoridades convidadas disseram que pouco se pode fazer em relação à operação ilegal de drones. Por ora, o governo só tem capacidade de aplicar sanções administrativas contra quem pilota drones sem autorização.
Desde 2023, a questão dos drones também é um problema para a Secretaria de Administração Penitenciária do Rio, pois os aparelhos são usados para levar drogas e celulares para dentro de presídios. A pasta estuda comprar quatro embaralhadores de sinal avaliados em R$ 1,7 milhão cada. A Gazeta do Povo entrou em contato com a Seap, mas até o momento não obteve resposta.
Além das suspeitas do uso de drones para lançar granadas no Morro do Quitungo, outro caso similar é alvo de investigação da polícia do Rio. Em setembro do ano passado, um militar da Marinha foi preso pela Polícia Federal, por suspeita de operar drones lança-granadas para um líder do Comando Vermelho no Complexo da Penha. O aparelho teria sido usado para atacar criminosos de uma milícia na zona oeste da cidade.



