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Análise

Escalada de crises do governo Lula desengaveta a pauta do semipresidencialismo

Luiz Carlos Hauly Pix
Autor da emenda que introduz o semipresidencialismo, deputado Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR) avalia que crises recorrentes esgotaram o sistema de governo atual. (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil)

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A escalada de crises no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – agravada pela disparada da inflação e pela acirrada disputa entre o Congresso e o Palácio do Planalto por recursos do Orçamento da União – despertou o senso de oportunidade de parlamentares que veem no semipresidencialismo uma solução para os resistentes impasses entre os poderes.

O sistema semipresidencialista estabelece que um Presidente da República eleito pelo voto direto da população divida o poder com um primeiro-ministro nomeado por ele, em consenso com a maioria dos congressistas. Nesse sistema, o presidente eleito fica responsável pela política externa e pelas Forças Armadas. O premiê, escolhido entre deputados e senadores, cuida da política interna do país. Não há a figura do vice-presidente.

Segundo defensores da mudança do sistema de governo, os presidentes da República no Brasil correm o sério risco de impeachment quando acometidos por crises fiscais, falta de uma base parlamentar sólida e ainda queda de popularidade. Quando o impeachment não é possível, resta ao governo seguir enfraquecendo gradativamente até a próxima eleição presidencial. Nesse cenário, o país fica paralisado em um estado prolongado de incerteza, onde o governo não consegue aprovar suas pautas e projetos nem a oposição avança com suas demandas.

A dois anos das eleições, o governo Lula reúne características desse impasse. Segundo pesquisa do Datafolha divulgada no dia 14, o índice de aprovação do presidente caiu de 35% para 24%, atingindo o pior nível dos três governos de Lula registrados pelo instituto. Foram ouvidas 2007 pessoas de 113 cidades nos dias 10 e 11 de fevereiro no levantamento, que tem margem de erro geral de dois pontos para mais ou para menos.

O governo vem sofrendo sucessivas crises políticas, como a tentativa de monitoramento do PIX, a alta do preço dos alimentos e a desvalorização da moeda. Em paralelo, o Executivo disputa com o Legislativo o controle sobre investimentos públicos tentando reduzir o acesso dos parlamentares a verbas para emendas de Orçamento. Nessa disputa, o Judiciário vem ajudando o governo de Lula.

O argumento dos semipresidencialistas é que, com o novo sistema, o governo poderia ser rapidamente substituído e o país seguiria um novo rumo sem depender de um moroso processo de impeachment.

Foi nesse contexto que o início do ano legislativo foi marcado pela apresentação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 2/2025, que propõe a transição do atual sistema presidencialista para um modelo semipresidencialista, a ser implementado a partir das eleições de 2030.

O líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), afirmou à Gazeta do Povo que a movimentação em torno da PEC, apoiada pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), reflete o crescente desgaste sofrido pelo governo Lula.

“O surgimento agora de uma nova proposta semipresidencialista é só o sintoma de uma doença”, analisou.

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De autoria do deputado Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR) e outros, a PEC do semipresidencialismo é vista por políticos e analistas como a melhor alternativa para crises de governabilidade. Os críticos, por sua vez, veem nela o desejo de líderes partidários de consolidar o protagonismo do Legislativo dos últimos anos, com mais controle sobre verbas e agendas.

João Henrique Hummel Vieira, diretor da Action Relações Governamentais, avalia que os deputados começaram 2025 dispostos a mostrar serviço, mas ainda não exerceram toda a força que têm, preferindo aguardar o desfecho da negociação com o Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a liberação de emendas de comissões. Em meio a isso, surge a PEC semipresidencialista.

“Para mostrar que o país não tem outra pauta além da eleição de 2026, a Câmara acena com um parlamentarismo disfarçado. A questão da representatividade do sistema de governo deveria ser um grande debate para a sociedade, que corre hoje o risco de ficar dois anos sem enxergar saídas para impasses de governos sem base parlamentar”, explica.

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Mudança de sistema pode não garantir governabilidade

Eduardo Galvão, professor de Políticas Públicas do Ibmec-DF e diretor da consultoria internacional Burson, argumenta que crises de governabilidade sempre reavivam o debate sobre mudar o sistema de governo, “mas o problema pode estar mais em quem o opera do que no modelo em si”.

Segundo ele, dividir o poder entre presidente e primeiro-ministro até pode elevar a estabilidade política, “mas será que o Brasil está preparado?”. Na França e Portugal, onde partidos são organizados, o semipresidencialismo funciona. O especialista, contudo, vê na realidade brasileira um elevado risco de atritos, gerando dúvidas sobre quem afinal asseguraria a governabilidade: o chefe de Estado eleito ou o chefe de governo escolhido por acordos partidários.

Galvão questiona ainda se essa mudança atenderia a interesses da sociedade ou só da classe política. “Sempre que o presidencialismo sofre turbulências, volta-se à discussão sobre o parlamentarismo ou semipresidencialismo – soluções que costumam favorecer quem já detém o poder”, observa.

Já Matheus Pimenta de Freitas, professor de Direito Constitucional e advogado eleitoral, defende que a sociedade se mobilize para mudar o sistema de governo, pois o modelo atual, desde a redemocratização, tem se mostrado falho – dois dos cinco presidentes eleitos desde 1989 foram submetidos a impeachment. “Sem apoio total do Legislativo, ninguém escapa”, afirma.

Ele ressalta que o presidencialismo de coalizão não garante a verdadeira independência do governante, facilitando a cassação por crimes de responsabilidade, quando deveria ocorrer só em casos extremos.

“Ao longo do tempo, o sistema vem se aproximando do parlamentarismo, com mais controle do Legislativo sobre a pauta de votações e diminuição do peso do Executivo. Por isso, acredito que a mudança pode melhorar a governabilidade, permitindo a rápida substituição de chefes de governo em crise por meio de um simples voto de desconfiança dos parlamentares”, diz.

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Movimento em defesa da PEC busca encerrar polarização política

A chamada "emenda Hauly" resgata a PEC 20/1995, do ex-deputado Eduardo Jorge (SP), que lidera o movimento Livres da Polarização, ao lado do ex-deputado Roberto Freire (PPS), do cientista político Augusto de Franco e de Gilberto Natalini (PV), vereador de São Paulo. Eles argumentam que o Brasil tem perdido oportunidades históricas devido a turbulências institucionais.

“O presidencialismo praticado no Brasil não tem sustentabilidade e provoca prolongadas crises políticas com efeitos sobre a economia”, justifica Haully.

O Brasil foi parlamentarista no Império e no início dos anos 1960, durante o governo João Goulart, com o novo sistema de governo (1961-1963) sendo revertido por consulta popular após 504 dias.

A maioria dos constituintes de 1987 era parlamentarista, mas faltou consenso na época sobre a transição. No plebiscito de 1993, a maioria (55,41%) do eleitorado disse sim ao presidencialismo, rejeitando as mudanças.

De Gilmar Mendes a Michel Temer, novo sistema ganhou impulso com Motta

O semipresidencialismo no Brasil é apoiado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, e pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), que empoderou o Congresso durante seu governo. O semipresidencialismo foi também defendido pelo último presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que chegou a criar um grupo de trabalho para discutir o tema. O assunto voltou a ganhar força com a eleição do seu sucessor, Hugo Motta.

Após sua eleição à Presidência da Câmara no início do mês, o deputado Hugo Motta disse que Constituição de 1988 previa uma maior autonomia para o Legislativo que foi substituída pelo "toma lá, dá cá" do presidencialismo de coalizão.

O texto do projeto de lei do semipresidencialismo foi protocolado com a assinatura de 181 deputados, 10 a mais do que o mínimo necessário para tramitar. O PT está fora da lista de apoiadores, mas há adesões de legendas de esquerda da base governista, como PDT (7) e PSB (2). Já PCdoB e PV, federados ao PT, deram um apoio cada. O PL, maior legenda de oposição, apoiou com um terço dos seus 99 deputados.

A PEC aguarda despacho da Presidência da Câmara para ser enviada à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), que avaliará sua admissibilidade. Caso seja aprovada, será debatida por comissão especial, antes de seguir para votação em plenário. A aprovação requer os votos de três quintos de deputados e senadores, em cada um dos dois turnos de votação.

Mas o clima de crise e a queda de popularidade de Lula não garantem a mudança de sistema. Por ora, o eventual avanço da proposta sinaliza a ineficiência do sistema político e de seus operadores.

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