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Abertura de negociação de acordo comercial

Gestos de Lula e Trump confirmam barreiras e diferenças políticas antes de possível reunião

Lula e Trump
Os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e dos Estados Unidos, Donald Trump, podem se encontrar durante cúpula na Malásia. (Foto: Sarah Yenesel/Jim Lo Scalzo/EFE)

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A poucos dias de um hipotético novo encontro presencial, possivelmente no domingo (26), na Malásia, destinado a discutir o acordo comercial entre Brasil e Estados Unidos, os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump mostraram nos últimos dias que a tão repetida “química” entre eles está longe de gerar resultados concretos.

Lula foi o autor do gesto mais recente de conflito. Nesta quinta-feira (23), em viagem à Indonésia, o presidente brasileiro voltou a atacar a política americana de aumento de tarifas comerciais. O brasileiro também estimulou o uso de ferramentas que possam servir como alternativas ao dólar e ao sistema financeiro americano em transações globais.

"No âmbito do Brics, o PIX brasileiro e o QRIS da Indonésia oferecem modelos de sistemas de pagamentos eficazes e acessíveis que podem inspirar medidas que facilitarão o comércio em moedas locais entre países do bloco. Esse movimento também faz parte de uma estratégia mais ampla do Brasil de diversificar parcerias e facilitar comércio", afirmou Lula.

"Como a Indonésia, o Brasil se opõe a medidas unilaterais e coercitivas que distorcem o comércio e limitam a integração econômica", disse o presidente brasileiro, sem mencionar diretamente a elevação para 50% da tarifa imposta ao Brasil para exportar produtos para os Estados Unidos.

A criação e propagação de sistemas de pagamento similares ao PIX, que dispensam cartões de crédito operados por empresas americanas, e a realização de transações comerciais entre países sem o intermédio do dólar são vistas por Washington como ameaças comerciais. A defesa dessas opções, que vem sendo feita por Lula desde 2023, foi uma das principais razões que fundamentaram a decisão de Trump aumentar as tarifas de comércio com o Brasil, segundo analistas.

Declarações expõe divergências políticas

As declarações de Lula mostram que divergências comerciais e políticas entre os presidentes seguem em evidência, sobretudo após recentes críticas públicas de Lula aos Estados Unidos e a sua reação à pressão de Trump contra o ditador venezuelano Nicolás Maduro.

A Casa Branca já realizou ao menos sete ataques contra barcos venezuelanos que transportavam drogas pelo mar do Caribe e autorizou a CIA (agência americana de inteligência) a realizar ações com uso de violência contra a ditadura de Maduro.

"O povo venezuelano é dono do seu destino e não é nenhum presidente de outro país que tem que dar palpite em como vai ser a Venezuela ou como vai ser Cuba", disse Lula na semana passada.

Segundo analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, é evidente o contraste entre o discurso do governo brasileiro, de que Lula pode resolver a questão das tarifas comerciais, e a realidade hostil do cenário geopolítico.

Trump não mencinou o Brasil publicamente em novas falas, mas as diferenças já eram visíveis até em uma nota conjunta divulgada pelas chancelarias de Brasil e Estados Unidos na quinta-feira (16), um dia após o encontro em Washington dos respectivos chefes da diplomacia, o ministro Mauro Vieira e o secretário de Estado, Marco Rubio.

O texto ressaltou harmonia e perspectivas, dizendo que a conversa foi muito positiva, mas não confirmou a viabilidade de uma reunião entre os presidentes. O Itamaraty trabalha para que a reunião possa ocorrer na cúpula da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), na Malásia, que contará com a presença de Lula e de Trump no próximo domingo.

“Enquanto a nota oficial fala de convergência e cooperação, autoridades americanas do Departamento de Estado reafirmam condicionantes”, diz Márcio Coimbra, diretor do Instituto Monitor da Democracia.

A manutenção das sanções comerciais como instrumento de pressão, sem qualquer flexibilização, mostra que o “reatamento” é superficial, segundo Coimbra. “O atrelamento de questões comerciais e políticas específicas segue intocado, sem mudança substantiva na postura americana”, afirma.

Ele se refere ao fato de Trump ter afirmado que as sanções estão diretamente relacionadas à perseguição política contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O governo brasileiro tenta levar a negociação apenas para o campo comercial.

Coimbra acrescenta que a reação de Lula à ameaça de Trump contra Maduro favorece o descompasso. “O seu repúdio a países que "falam grosso" com o Brasil também destoa da tal "química" com o presidente americano. Essa dubiedade sugere indecisão, minando a capacidade de negociar”, pondera.

Elogios na ONU podem ter sido ponto fora da curva

A crise entre Brasília e Washington teve um episódio "fora da curva" em 23 de setembro, durante a Assembleia Geral da ONU, com um breve encontro entre os presidentes. Trump justificou medidas unilaterais como instrumentos de proteção dos interesses americanos e acusou o Brasil de censura, corrupção judicial e perseguição política. Mas, junto com a crítica, veio o afago: o presidente dos EUA disse naquela oportunidade que Lula parecia “homem bom” e houve “excelente química” entre eles.

Foi o americano quem sugeriu um encontro pessoal entre os dois, mas Lula optou por postergar a reunião. Analistas interpretaram a fala de Trump como uma ação para tentar esvaziar o discurso de Lula de luta contra um inimigo externo, que vem rendendo uma melhora na popularidade do presidente brasileiro, segundo pesquisas.

Para Daniel Afonso Silva, professor de Relações Internacionais da USP, o breve encontro entre Lula e Trump, seguido de videoconferência, serviu só para amenizar as tensões no relacionamento bilateral. “Não há espaço no mundo real para ilusões. A quebra de gelo não resolve nada”, diz.

O especialista não viu surpresas na declaração conjunta sobre o encontro entre Rubio e Vieira no dia 16, cujo tom previsível não traria rusgas e contradições. “A diplomacia cumpriu seu papel e as autoridades americanas fizeram o esperado de manter as sanções ao Brasil”, observa.

Da mesma forma, Silva acredita que Lula não escapou do figurino esperado ao criticar as ameaças de Trump à Venezuela. “Ele reagiu à iminente intervenção externa, falando à região, sobretudo aos países de tradição recente mais à esquerda”, resume.

Para o governo brasileiro, o desafio agora é não deixar que as divergências anulem esforços pela reabertura do diálogo. Nesse sentido, Lula chegou a dizer que houve "petroquímica" com Trump, mas também não abandonou o discursos político dizendo que o Brasil "não abaixou a cabeça" depois de ser "ofendido e sobretaxado" por ele.

Apesar da aposta do Palácio do Planalto de avanço na reunião de chanceleres, as tensões iniciadas em julho seguem da mesma maneira, com tarifas extras da gestão Trump, alegando abusos judiciais por parte do Brasil.

Em 30 de julho, o secretário do Tesouro americano, Scott Bessent, justificou o tarifaço como resposta a “agressões a direitos humanos e cerceamento de liberdades”. A Casa Branca acusou o Brasil de falhar no “devido processo e na liberdade de expressão”. O Itamaraty reagiu, denunciando a medida como tentativa de “pressionar o Judiciário e enfraquecer a soberania” brasileira.

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No sábado (18), em São Bernardo do Campo (SP), Lula afirmou a estudantes que quer criar uma “doutrina” com professores e alunos latino-americanos para fortalecer a independência da América do Sul e evitar que “presidentes de outros países falem grosso com o Brasil”, em referência a Trump. A fala ocorreu num aulão de cursinhos na cidade que é o seu berço político.

Dois dias depois, nesta segunda-feira (20), na cerimônia de recepção de 28 embaixadores, Lula defendeu a soberania da América Latina e o pacto regional pela paz. “Somos um continente livre de armas de destruição em massa”, disse, criticando intervenções externas. O presidente enfatizou que a região vive um período de “polarização e instabilidade” e precisa estar unida.

Em discurso no congresso do PCdoB - Partido Comunista do Brasil -, na quinta-feira (16), também em Brasília, Lula criticou diretamente os Estados Unidos. Ele exaltou o regime cubano como “exemplo de povo de dignidade” e reprovou “distorções da direita” sobre defensores dos direitos humanos.

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