Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Alada

Governo quer criar empresa espacial brasileira e militares sugerem parceria com Musk

Empresa especial de Lula, a Alada, será instalada na Base de Alcântara. (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

Ouça este conteúdo

No início de outubro, o governo encaminhou à Câmara dos Deputados um projeto de lei que, de acordo com a gestão petista, promete transformar o cenário aeroespacial do Brasil com a criação da Alada, uma empresa pública subsidiária que atuará na exploração e desenvolvimento da base de Alcântara, no Maranhão, como um polo de lançamentos de foguetes e no desenvolvimento de tecnologia nacional para a exploração espacial.

A iniciativa está sendo impulsionada pela Força Aérea Brasileira (FAB), que quer atrair investimentos e parcerias com grandes empresas do setor. Os militares sonham em comercializar a base, hoje chamada de Centro Espacial de Alcântara, e ter um programa espacial nacional desde o século passado.

Mesmo sem a estatal proposta, a base já é comercializada atualmente por meio de acordos de parcerias tecnológicas envolvendo a Agência Espacial Brasileira e o Departamento Brasileiro de Ciência e Tecnologia Espacial. Em 2023, um foguete da empresa privada sul-coreana Innospace foi lançado de Alcântara por meio desse tipo de parceria, mas ele é de proporções muito menores do que os de foguetes como os da Space X, de Elon Musk.

Já o programa de desenvolvimento de tecnologia espacial no Brasil vem sofrendo reveses, sendo o principal deles a explosão do Veículo Lançador de Satélites em 2003 antes do lançamento, que matou 21 engenheiros espaciais. Uma série de foguetes de testes da FAB já foram lançados com sucesso, mas o país ainda não tem a tecnologia de um foguete que possa ser usado em missões espaciais mais robustas.

O programa brasileiro é frequentemente comparado por críticos com o da Índia, que assim como o Brasil começou a desenvolver a tecnologia espacial na década de 1960. Enquanto o Brasil começava a comercializar seu centro de lançamento em 2023, a Índia pousava uma sonda na Lua.

O Projeto de Lei 3819/2024 que vai ser analisado no Congresso altera uma lei de 2019 e permite a criação da empresa subsidiária Alada. O texto não é específico e diz que a empresa poderá explorar economicamente a infraestrutura e a navegação e desenvolver projetos e equipamentos aeroespaciais.

Mas, segundo relatórios militares que contribuíram para a elaboração do projeto de lei, aos quais a reportagem teve acesso, o projeto ambiciona atrair gigantes da tecnologia aeroespacial. Entre os potenciais clientes do Centro Espacial de Alcântara estão a SpaceX, de Musk, a Virgin Galactic de Richard Branson e a Blue Origin, de Jeff Bezos.

Eles poderiam se interessar por acordos eventuais comerciais porque a base de Alcântara está em uma posição geográfica perto da linha do Equador, que permite o lançamento de foguetes com economia de combustível. Em tese, a base poderia rivalizar com o centro espacial de Kourou, que a França explora na Guiana Francesa.

Mas os relatórios militares esbarraram em uma questão política, divulgada recentemente em uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está inserido em uma rixa com Musk, o dono da Space X, por causa da resistência do empresário em aceitar decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) - ele considerou que elas ferirem o direito à liberdade de expressão.

Lula chamou Musk de "babaca" e ironizou seu projeto de exploração espacial. "Tem gente que ao invés de ajudar, tá fazendo foguete tentando procurar um lugar [lá fora] para morar", disse Lula em agosto, num contexto de criticar o bilionário por fazer pensar em um projeto de colonização de Marte ao invés de investir na preservação ambiental da Terra.

O ministro Marcos Antônio Amaro, do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, disse que sua pasta vem participando da criação da Alada, por ter a atribuição de coordenar o Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial, onde o projeto começou. Mas ele afirmou não saber de onde surgiu a informação do interesse de fazer negócios com a empresa de Musk, apesar de o nome da empresa constar em relatório final apresentado em julho, confirmado pela Gazeta do Povo. Amaro disse para a reportagem procurar a FAB, mas a corporação não retornou aos questionamentos até o fechamento desta reportagem.

Para o analista de mercado internacional Marcelo Dias, as negociações com Musk geram questionamentos pelo fato de o bilionário não ter uma proximidade com as pautas ideológicas do Brasil, diante das animosidades entre ele e o presidente Lula.

“Até pode aparecer em relatórios que a SpaceX é um potencial consumidor, porque de fato é, é uma gigante e em expansão. Mas, diante das circunstâncias, estaria mais próximo de negociações com a China ou com empresas e governos mais alinhados política e ideologicamente com o governo brasileiro do que com Musk”, reforça.

O ministro Amaro disse ser favorável à criação da Alada. "Tem a necessidade da criação dessa agência, ela vai permitir a exploração dos centros de lançamento e não apenas isso, vai ter outras atividades no setor aeroespacial, que interessa muito para o Brasil e hoje é um setor que ainda está com bastante dificuldade para evoluir", disse.

Lula também se negou a ouvir proposta da Ucrânia para setor espacial

Mas, mesmo com a eventual aprovação da subsidiária como a Alada, o programa espacial brasileiro pode continuar esbarrando nas preferências ideológicas do presidente Lula. Uma empresa binacional chamada Alcântara Cyclone Space havia sido criada nos anos 2000 com o governo da Ucrânia para lançar satélites da base brasileira usando o foguete ucraniano Cyclone-4.

A parceria foi encerrada pelo governo de Dilma Rousseff em 2015 - antes que o primeiro foguete fosse lançado. No ano passado, o governo da Ucrânia procurou o Brasil para dar continuidade ao projeto e oferecer um grande pacote de transferência tecnológica - a Ucrânia tem elevada capacitação técnica na área aeroespacial por ter participado do programa espacial soviético. Mas o presidente Lula nem ao menos recebeu o embaixador para ouvir a proposta.

O presidente brasileiro vem apoiando o plano de paz para a guerra da Ucrânia sugerido pela China, que é considerado favorável à Rússia por não prever a devolução de territórios ucranianos invadidos por Moscou em 2022. Lula também mandou cancelar recentemente uma licitação que havia sido vencida por Israel para a compra de canhões de artilharia.

Ministro diz que posições políticas não influenciam em programa espacial

Questionado pela reportagem, o ministro Amaro, do GSI, negou que posições políticas do governo influenciem na política do setor aeroespacial. "Uma coisa não tem nada a ver com a outra", disse à reportagem em entrevista na semana passada.

Em nota enviada à reportagem, o GSI também disse que a criação Alada quer preencher a lacuna existente no setor aeroespacial brasileiro.

Segundo o Gabinete de Segurança Institucional, o estabelecimento da subsidiária atende a imperativos de segurança nacional e interesses coletivos, tendo por funções: apoiar o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação, especialmente de tecnologias críticas de utilização aeroespacial; contribuir para a segurança nacional, em particular a segurança do espaço aéreo nacional; e promover o desenvolvimento econômico e social em prol do bem-estar da sociedade brasileira.

“Nesse contexto, a Alada permitirá maior flexibilidade administrativa e gerencial. Propiciará o desenvolvimento de projetos interdisciplinares complexos e que, muitas vezes, devem ser executados em conjunto com institutos e empresas nacionais e estrangeiras, que serão agilizados por possuírem a mesma natureza jurídica”, completa o órgão. A Defesa optou por não se manifestar.

Mesmo aprovada, Alada não deve operar no atual governo

Para o analista de mercado internacional Marcelo Dias, existem ainda outros aspectos a se avaliar na criação do Alada. O principal é que provavelmente não seria um projeto que vigoraria durante o governo de Lula e, muito provavelmente, nem em um segundo mandato, no caso de reeleição.

“Por mais que possa haver certa agilidade nas tramitações pela formatação da empresa e por ser uma subsidiária, estamos apenas em um processo inicial, precisa de aprovação no Legislativo, pode sofrer alterações nas Comissões e pode nem ser aprovado. No caso de aprovação, de onde sairiam os recursos em curto prazo para custear a infraestrutura necessária? São todas questões a serem avaliadas e que precisam de resposta”.

No plano de negócios apresentado para justificar a criação da Alada, o governo estima que a base deixaria de consumir verbas da União “em curto espaço de tempo”, assim que passasse a operacionalizar e pudesse ter a estrutura locada. O documento, porém, não prospecta quando isso correria.

VEJA TAMBÉM:

O Centro de Lançamento de foguetes em Alcântara e a posição estratégica

Um relatório interministerial, que conta com a participação de oficiais da Aeronáutica, defende que a Alada tenha primazia na exploração comercial das atividades em Alcântara. Se a criação for aprovada pelo Congresso, a empresa será subsidiária da NAV Brasil Serviços de Navegação Aérea S.A. (NAV Brasil).

A NAV Brasil é uma estatal vinculada ao Ministério da Defesa, criada no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), em 2020, para cuidar dos serviços de navegação aérea, como operação de radares e medição meteorológica, antes a cargo da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero).

O governo Lula acredita que a Alada “poderá proporcionar a autossuficiência do Brasil em materiais aeronáuticos, espaciais e bélicos, reduzindo a dependência de fornecedores estrangeiros, especialmente em tecnologias sensíveis que sofrem restrições para a exportação”.

O relatório do GT20, grupo de trabalho que atuou nos estudos que culminaram no projeto de lei, aponta a necessidade de investimentos bilionários, estimando que apenas a construção de um terminal portuário em Alcântara possa custar próximo de R$ 11 bilhões.

Não há valores especificados para todo o projeto, mas no documento a sugestão é para que a infraestrutura e melhoria de acesso possa ser concluída em cinco anos, financiada pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o Fundo de Desenvolvimento Regional do Nordeste (FDNE).

O GT20 foi criado pelo GSI em dezembro do ano passado. O Gabinete tem defendido que o único objetivo do projeto é explorar e potencializar as capacidades brasileiras no setor aeroespacial e que não há a possibilidade de influência de política externa no projeto, pois não teria o objetivo de resolver ou influenciar situações diplomáticas.

Para os militares, o projeto não se limita a um plano comercial com locação da estrutura para empresas privadas ou a governos, mas é visto como uma questão também de soberania e segurança nacional.

Já o advogado Alexandre Pires, especialista em direito internacional e que acompanha de perto aspectos ligados à tecnologia aeroespacial no Brasil, afirma que o futuro da Alada será moldado pela capacidade de atrair investimentos, parcerias, mas também pela habilidade do país em integrar tecnologia e inovação em sua trajetória rumo ao espaço.

O especialista também acredita que, para ser aprovado no Legislativo, precisará de uma ampla interlocução dos próprios militares junto a deputados e senadores, muito maior que a do próprio governo.

“Esses projetos de Defesa são caros aos militares e alguns deles vêm desde os anos de 1960. Caberá aos militares sensibilizarem parlamentares à aprovação. Bem ou mal, esses projetos têm sido mantidos no escopo da Defesa”, acrescenta.

Militares que participaram da elaboração do projeto enxergam nele uma “solução líder para a inserção do Brasil no mercado global no segmento aeroespacial”.

Para o especialista, não se pode avaliar no momento se governos mais alinhados à política do presidente Lula, como a China ou Cuba, por exemplo, podem ter benefícios na utilização da estrutura. Mas a China, principalmente, está entre os potenciais clientes, a exemplo da Índia e de empresas privadas como a própria SpaceX.

“Basta saber se será um projeto para marketing ou se de fato será um projeto para evolução da tecnologia aeroespacial brasileira”, destaca.

VEJA TAMBÉM:

Criação do Alada por Lula está em debate desde o governo Dilma Rousseff

A criação da Alada tramita há 12 anos. Em 2012, foi proposta pela Força Aérea Brasileira durante o governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) no momento em que envolvia negociações, travadas por aquele governo, para o uso da base para lançamento de foguetes pelos Estados Unidos. O Brasil não aceitava que Washington tivesse direito a isolar áreas da base para preservar sua tecnologia. Um convênio com os americanos só foi firmado anos mais tarde, em 2020, durante o governo de Bolsonaro.

“O mercado global nesse segmento, até bem recente, esteve fechado ao Brasil. Para que o país tenha acesso a esse mercado, dois passos precisam ser dados. O primeiro já foi executado por meio do acordo de salvaguarda tecnológica; o segundo é a criação da empresa pública. Mas, para podermos realmente entrar nesse mercado, precisamos que os recursos sejam gerenciados de maneira empresarial e estratégica”, disse em manifestação pública no fim do ano passado o subdiretor de Contratos e Convênio da Diretoria de Economia e Finanças da Aeronáutica (Diref), brigadeiro do Ar Paulo Ricardo Silva Mendes.

Para chegar à finalização do projeto, o governo Lula precisou resolver um imbróglio envolvendo comunidades quilombolas que viviam na região da base no Maranhão. A União desapropriou 500 famílias e as realocou em outras regiões - distantes de Alcântara - em setembro passado.

VEJA TAMBÉM:

Como nasceu a Base de Alcântara, local em que ficará empresa espacial proposta por Lula

A Unidade da Força Aérea Brasileira no Maranhão, o então chamado CLA (Centro de Lançamento de Alcântara) foi construído para ser ponto de lançamento de foguetes científico-tecnológicos devido à localização geográfica estratégica, já que não era possível a ampliação do Centro de Lançamento da Barreira do Inferno (CLBI) de Natal (RN), que sofria processo de expansão urbana na época. A fundação ocorreu no dia 1º de março de 1983.

A escolha da cidade de Alcântara foi motivada pela proximidade com a Linha do Equador, que catalisa o impulso dos lançadores, economizando combustível utilizado nos foguetes. O projeto já caminhava lentamente, mas freou bruscamente durante o primeiro governo de Lula, após o grave acidente em agosto de 2003 com uma explosão no Centro de Lançamentos matando 21 pessoas.

Alexandre Pires avalia que nessa nova fase do projeto, com a Alada, não se vislumbra uma estrutura a curto prazo, já que, apenas para a resolução dos problemas relacionados à infraestrutura, estima-se meia década. Isso demandaria ser um projeto de Estado e não de governo, para que possa de fato explorar economicamente a infraestrutura e a navegação aeroespaciais.

Um dos grandes limitadores é a provisão orçamentária para estruturar a Alada, a empresa aeroespacial proposta por Lula. O governo destina recursos ínfimos ao Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE) e ao Programa Estratégico de Sistemas Espaciais (Pese).

Em 2022, ainda na gestão anterior - última informação disponibilizada pelo governo –, foram R$ 78 milhões, o menor entre os países do Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) e estão divididos entre Pesquisa e Desenvolvimento, manutenção da infraestrutura espacial e ações específicas da Agência Espacial Brasileira.

Em 2020, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Banco Mundial apresentaram relatórios sobre investimentos e o Brasil perde até para a vizinha Argentina nessa área, que convive com crises econômicas históricas.

A Argentina investe 0,014% do PIB (US$ 0,05 bilhão), 21% a mais do que o Brasil investe na proporção do PIB (US$ 0,04 bilhão, equivalente a 0,003% do PIB). A Índia investe 0,049% do PIB (US$ 1,31 bilhão), a Rússia 0,21% (US$ 3,14 bilhões) e a China 0,075% do PIB (US$ 11,02 bilhões).

O projeto de criação da Alada, proposto por Lula, segue agora para as comissões temáticas da Câmara dos Deputados. Para virar lei, precisa também ser aprovada pelo plenário da Câmara e pelo Senado. A expectativa nas Casas é de que o tema só será apreciado em plenário em 2025.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.