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Bolsonaro
O ex-presidente Jair Bolsonaro durante evento em Goiânia, em 18 de agosto.| Foto: André Borges/EFE

Com depoimento marcado para esta quinta-feira (31), o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) deverá explicar à Polícia Federal (PF) o recebimento e a destinação de joias e presentes dados por autoridades estrangeiras. Em termos jurídicos, o caso ainda possui brechas que dão ao ex-mandatário a dúvida sobre a suposta prática de peculato ou não.

O depoimento é fruto do desdobramento de uma operação iniciada pela PF (Lucas 12:2) para apurar se houve peculato no caso das joias recebidas pelo governo do ex-presidente de autoridades da Arábia Saudita em 2019 e 2021. Membros da gestão Bolsonaro teriam tentado trazer ao Brasil joias inicialmente avaliadas em cerca de R$ 16,5 milhões - valor que foi posteriormente corrigido pela própria Receita Federal para R$ 5 milhões.

Além de Bolsonaro, também serão ouvidos: a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid; o pai dele, o general do Exército Mauro Cesar Lourena Cid; o advogado Frederick Wassef, que defendeu a família Bolsonaro em diversos casos; e o advogado Fabio Wajngarten, ex-chefe da comunicação do governo Bolsonaro.

Até o momento, duas normativas dos Acervos Privados da Presidência da República regulam o caso em linhas gerais. A primeira é a Lei nº 8.394, de 30 de dezembro de 1991, assinada pelo então presidente Fernando Collor de Melo e que dispunha sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República.

Já a segunda é o Decreto nº 4.344, de 26 de agosto de 2002, editado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que normatizou a lei de 91 e definiu o que é considerado acervo documental privado do presidente da República. A normativa ressalva que presentes recebidos em eventos oficiais com chefes de Estado e de Governo, como as "Visitas Oficiais" ou "Viagens de Estado", são considerados patrimônio da União.

Ambas as normas consideram que bens consumíveis, como por exemplo doces, frutas e itens personalíssimos do presidente não são incorporados ao acervo da União. No entanto, não definem objetivamente o que seriam esses itens personalíssimos e quais seriam os valores adotados nessa classificação.

O que diz o TCU?

Após os casos envolvendo presentes dados a Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Dilma Rousseff (leia mais abaixo), o Tribunal de Contas da União (TCU) produziu um entendimento jurídico para o assunto. Ao concluir a primeira etapa da fiscalização, em agosto de 2016, o ministro Walton Alencar, relator do processo, concluiu que presentes recebidos por presidentes de chefes de Estado estrangeiros deveriam ser incorporados ao patrimônio público, exceto aqueles de natureza “perecível e personalíssima”, como perfumes e roupas, por exemplo. Os demais, especialmente de valor mais elevado, deveriam ser destinados ao patrimônio público.

“Os presentes são recebidos pelos presidentes brasileiros, em razão da natureza pública e representativa do cargo que ocupam e não como mecanismo de obtenção de receita ou acumulação de patrimônio. Nessas ocasiões, o presidente em exercício retribui os presentes, mediante a entrega de outros presentes, estes adquiridos pelo Governo brasileiro, custeados com recursos públicos dos contribuintes brasileiros”, afirmou o ministro do TCU.

A fiscalização do tribunal verificou que ao menos 361 presentes eram mimos pessoais, como medalhas personalizadas, e bens de consumo direto, como bonés, camisetas, gravatas, perfumes, etc., que poderiam fazer parte do acervo pessoal. Os demais eram obras de arte e artigos de valor, que deveriam, por lei, adornar os palácios presidenciais ou ser exibidos em museus públicos.

Também foi apurado que só eram incorporados ao patrimônio da União aqueles itens entregues numa cerimônia oficial de “troca de presentes” entre os dois chefes de Estado, algo que raramente ocorria na prática. Na grande maioria dos casos, o recebimento era feito por auxiliares em viagens internacionais que muitas vezes não contavam com a presença do chefe do Executivo.

Por conta disso, o TCU concluiu que o critério de só incorporar à União presentes recebidos em cerimônia específica permitia que o próprio presidente ou terceiros, por conveniência, os direcionassem para o acervo pessoal.

“Imagine-se, a propósito, a situação de um Chefe de Governo presentear o Presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do Presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade”, advertiu Walton Alencar.

Cabe ressaltar que o Tribunal de Contas da União não tem poder jurisdicional sobre matérias criminais, sendo sua função julgar as contas presidenciais e assuntos administrativos da própria União.

Portaria 59/2018

Posteriormente, o ex-presidente Michel Temer (MDB) editou a Portaria 59/2018 especificando que itens de decoração, vestuários, joias, semijoias, bijuterias, artigos de escritório e artigos de toalete são considerados bens “de natureza personalíssima ou de consumo direto pelo recebedor”.

A norma foi citada por Bolsonaro como justificativa para a retirada dos kits do acervo da presidência da República. Ele também salientou que há uma equipe de servidores concursados na Presidência que classificam os presentes como personalíssimos ou não, indicando assim que não foi ele quem teria decidido ficar com as joias.

“Todos os ex-presidentes tiveram problema. A legislação é confusa, de 1991, se não me engano. Tem uma portaria de final de 2018, do governo Temer, e ali está dito o que é personalíssimo. E quem diz é um órgão da Presidência [...] Essa equipe não é comissionada, é [de] pessoas antigas, e classificou como personalíssima, entra no acervo pessoal do presidente”, disse o ex-presidente em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo durante um café em Abadiânia (GO).

Bolsonaro detalhou que presentes recebidos no estrangeiro são transportados em outro avião, e encaminhados diretamente para o setor chamado Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) da Presidência para cadastro e classificação. “Não tenho acesso a tudo que chega lá. Tenho 9 mil itens, metade camisetas e bonés, o que fazer com isso aí? Está guardado num canto, bem guardado, mas é só dor de cabeça”, disse. Esses itens também são considerados personalíssimos, junto com outros como perfume e vinhos.

Em 2021, durante o próprio governo de Bolsonaro, a portaria de 2018 foi revogada por outra. Questionado sobre isso, o ex-presidente disse que, quando uma norma do tipo é revogada, há uma “vacância”. Depois, disse que o próprio TCU provocou o Congresso para legislar sobre o assunto. “Tem que ter uma legislação que todo mundo, com boa-fé, não tenha problema”.

Por ter sido revogada depois de receber as joias sauditas, a portaria editada por Temer ainda valia na época dos presentes dados a Bolsonaro. É importante destacar que nem o TCU, nem a portaria 59/2018 definem se relógios seriam bens de natureza personalíssima ou não. Com isso, resta a dúvida sobre o recebimento e venda do relógio Rolex.

A situação também foi comentada por Bolsonaro, que alegou que, na dúvida sobre a natureza pública ou privada das joias que recebeu de presente, a Justiça deveria beneficiá-lo, considerando-o inocente do crime de peculato, que consiste no ato de um funcionário público apropriar-se de um bem público de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo em proveito próprio.

“Um relógio, por exemplo... Não está definido”, disse o ex-presidente, em entrevista ao jornal. Perguntado se essa avaliação deveria ficar com a Justiça, Bolsonaro respondeu: “Fica no ar. E em dúvida, tem que verificar o lado, está certo?”

O procurador de Justiça e doutor em Direito pela PUC-SP Fernando Capez explicou que o caso investigado pela PF pode não se enquadrar em crime de peculato por não haver uma lei que defina quais presentes o chefe do Executivo pode ou não levar.

“Nós não estamos falando de um ato de corrupção, de desvio de dinheiro público. Nós estamos falando de um presente de alto valor, que dentro de um conceito ético deveria ter sido transferido para propriedade da União. Mas não existe nenhuma lei dizendo que presentes caros são de propriedade da União. Isso é uma interpretação feita pelo Tribunal de Contas da União, mas não existe uma lei que caracterize peculato. E não há crime sem lei que o defina”.

E acrescentou: "É preciso avançar na verificação do que ocorreu. O artigo 5°, inciso 9 da Constituição Federal diz que não há crime que a lei não defina. O peculato, artigo 312, é desviar bem público ou particular em proveito próprio ou de terceiros. Para você desviar, este bem precisa ser de propriedade da União. É preciso que se discuta se uma interpretação do TCU torna o bem de propriedade da União ou se ele tem um dever ético, porque não existe lei", afirmou Capez.

Já para o professor e mestre em Direito Penal Eduardo Cabette, para ser inocentado do crime de peculato, Bolsonaro deverá provar, sem margem para dúvida, que os presentes recebidos tinham natureza particular.

“Uma defesa mais consistente seria provar que não tem lei nenhuma que diz que esse bem é público. A defesa poderia argumentar que realmente era um bem privado, porque submetido a determinado setor da Presidência, responsável pela classificação, foi-lhe assegurado, com algum documento, que o bem era privado, e por isso, se baseando nisso, o ex-presidente teria então ficado com ele. Teria que ter alguma coisa, alguma documentação, que tenha autorizado que ele ficasse, por ser considerado um bem pessoal, particular”, opinou Cabette.

O que diz a defesa de Bolsonaro

Em entrevista ao canal Globo News, na sexta-feira (18), o advogado de Bolsonaro, Paulo Bueno, defendeu que o ex-presidente ressaltou que o ex-ajudante de ordens Coronel Mauro Cid tinha autonomia sobre as joias e negou que o ex-presidente tenha ordenado a venda. O militar é investigado no caso por tentar vender as joias sauditas no exterior.

“O tenente-coronel Mauro Cid, como qualquer ordenança de presidente da República, possui muita autonomia. Você imagina a quantidade de demanda que chega que ele precisa resolver independe de aprovação do presidente da República”, disse o advogado.

Para ele, o ex-presidente poderia vender as joias, caso quisesse. “Se foi iniciativa do ex-presidente Jair Bolsonaro ou do coronel Mauro Cid, a verdade é que uma vez catalogados como acervo privado de interesse público, esses bens podiam ser alienados. É expresso, tanto na lei quanto no decreto. E o acórdão do TCU em momento nenhum, e nem poderia, aborda a revogação de um texto legal tão expresso quanto esse”, afirmou Bueno.

Desde março, o ex-presidente vem devolvendo as joias sauditas após determinação do TCU. Por outro lado, a defesa estuda pedir a devolução dos itens caso o tribunal mude a definição dos presentes do ex-chefe do Executivo de “à União” para “acervo privado".

“A gente entende que, sendo um bem de acervo cadastrado corretamente no acervo privado, a propriedade dos bens e a posse são do ex-presidente. Se sair da normalidade, do que a gente entende como correto, a gente pode judicializar”, disse o advogado Daniel Tesser ao site Poder 360.

Não foi só Bolsonaro: Lula e Dilma também levaram presentes

A falta de legislação do Congresso Nacional sobre o tema deixou os presidentes em um limbo jurídico, onde cada um levou para seu acervo pessoal o que convinha. Prova disso é que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) foram obrigados a devolverem presentes recebidos.

Entre 2016 e 2019, ao fiscalizar os presentes recebidos pela Presidência de 2003 a 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) constatou que o Lula se apropriou de 434 objetos dados ao Brasil por chefes de Estado estrangeiros durante seus dois primeiros mandatos. Dilma, por sua vez, tomou para si 117 itens.

No início da fiscalização, em 2016, o órgão determinou que a Presidência, então ocupada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), identificasse com quem e onde estariam 568 presentes dados a Lula e 144 recebidos por Dilma, de modo que fossem incorporados ao patrimônio público da União. Com base em dados consolidados pela Presidência, os números depois foram revistos.

No mesmo ano, 132 presentes dados a Lula foram encontrados pela Polícia Federal num cofre do Banco do Brasil no centro de São Paulo; 21 de maior valor foram depois confiscados pela Presidência. Em 2019, no final da auditoria, o TCU registrou que 360 presentes recebidos por Lula foram localizados no galpão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e foram transportados de volta para Brasília. Outros 74 não foram localizados. Lula ainda tenta reaver esses bens.

Já os presentes recebidos por Dilma foram encontrados num galpão da Cooperativa dos Trabalhadores Assentados na Região de Porto Alegre, em Eldorado do Sul (RS). No local, no entanto, não foram localizados 6 dos 117 presentes identificados – segundo representantes da ex-presidente, eles teriam ficado nas dependências da Presidência.

O relatório não detalhou o que eram esses presentes, mas alguns itens – esculturas, maquetes, espadas e uma coroa – foram incorporados à União após uma decisão judicial.

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