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Com a bíblia e o fuzil

Líder de facção do Rio pode ser classificado como terrorista por usar motivação religiosa

Traficantes utilizam de forma criminosa símbolos religiosos e se autodenominam como Soldados de Jesus. (Foto: Juliet Manfrin/Gazeta do Povo/Meta IA)

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Uma antiga facção criminosa do Rio de Janeiro passou por um processo que executivos poderiam chamar de "mudança de imagem" ou rebranding, em inglês. Membros do Terceiro Comando Puro (TCP) se identificam hoje com uma mistura de símbolos religiosos, se consideram evangélicos e adotaram a autodenominação de "Soldados de Jesus". Mas a nova imagem pode render a um de seus líderes um indiciamento na nova lei Antiterrorismo do Brasil.

Peixão, apelido de Álvaro Malaquias Santa Rosa, está foragido da Justiça e é suspeito de torturar seus adversários em nome da fé e da religião antes de matá-los, segundo a Polícia Militar fluminense. "Dono do morro" no Complexo de Israel, na zona norte do Rio de Janeiro, Peixão também é investigado pela Polícia Federal e, se for preso, pode ser indiciado como terrorista.

Para o sociólogo, especialista em Segurança Pública Marcelo Almeida, a nomenclatura, Soldados de Jesus, reflete a crença de que o bando está envolvido em uma missão espiritual, utilizando elementos religiosos como justificativa para seu domínio territorial, oferecendo uma suposta proteção à comunidade local e repressão cruel a outras religiões e adversários.

Os Soldados de Jesus, termo que já foi adotado por criminosos em outros regiões do Brasil e em outras organizações criminosas, se evidenciaram no autodenominado Complexo de Israel, conjunto de comunidades do Rio de Janeiro que envolve Vigário Geral, Parada de Lucas, Cidade Alta, Cinco Bocas e Pica-Pau.

O espaço está tomado com barricadas para evitar a entrada da polícia e de rivais, cercado de criminosos fortemente armados e bandeiras com a Estrela de Davi. O símbolo da fé judaica é usado como referência à fé evangélica sobre o retorno de Jesus Cristo. Uma grande Estrela de Davi azul em neon instalada em uma caixa d'água pode ser vista em Parada de Lucas por quem chega de carro ao Rio de Janeiro.

O Complexo é controlado pelo TCP há quase uma década. Desde 2016, a facção avança sobre territórios e se apropria de símbolos, ostentando bandeiras de cunho supostamente religioso para demonstrar que o local está sob seu controle. “A indicação não vale só para a polícia, mas para os rivais. A bandeira indica que aquele lugar tem um dono, estipula quem manda”, diz Almeida.

A organização também se utiliza de interpretações bíblicas de forma enviesada impondo restrições a práticas religiosas divergentes, com hegemonia de uma determinada crença cristã. “E assim, avançam inclusive sobre áreas dominadas pelo Comando Vermelho e outros grupos não aliados, com o fuzil em uma mão e a bíblia na outra e assim tentam justificar suas ações sanguinárias”, completa o sociólogo.

“Isso vende uma falsa sensação falsa de proteção das pessoas que vivem nessas regiões onde, muitas vezes, a segurança do estado não chega. Então uma suposta segurança está nas mãos de uma organização criminosa que cuidaria da comunidade. Depois de se vender como um núcleo religioso aproximando as pessoas de uma tentativa de sensibilização religiosa ou mesmo para justificar atos cruéis contra adversários em nome de Deus e da fé”, completa Almeida.

O Terceiro Comando foi uma facção surgida no fim dos anos de 1980 no Rio de Janeiro em oposição ao Comando Vermelho formada por traficantes de drogas e assaltantes que não tinham qualquer motivação religiosa. Ela foi desmantelada após lutas com o Comando Vermelho, mas alguns de seus membros remanescentes criaram no início dos anos 2000 o Terceiro Comando Puro, que hoje é a segunda maior facção criminosa do Rio.

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O avanço e o enfrentamento entre o TCP e o CV no Rio de Janeiro vêm escalando nos últimos meses. O TCP quer ampliar sua área de tráfico de drogas na capital e na grande região metropolitana. No fim do ano passado, após um tiroteio que deixou três inocentes mortos, dois feridos e um suspeito baleado na Avenida Brasil na capital fluminense, o governador Cláudio Castro (PL) disse que os mortos e feridos foram vítimas de um "ato de terrorismo" e pediu ajuda do governo federal para conter o avanço do crime organizado que escala no estado, mas que não se restringe ao Rio de Janeiro.

Segundo Castro, recentemente a PM passou perto de capturar Peixão e, por esse motivo, os “Soldados de Jesus” teriam aberto fogo de forma indiscriminada e aleatória, não apenas contra a polícia que teve uma aeronave alvejada com dois disparos, mas contra civis para tentar despistar e tirar o foco da PM da operação.

“Foi um ato de terrorismo. Não dá pra classificar de outra forma. A polícia estava de um lado e a ordem [dos criminosos] foi atirar nas pessoas que estavam do outro lado. Esses criminosos atiraram a ermo para acertar pessoas de bem que estavam indo trabalhar", denunciou o governador, mas sem fazer referência à facção ter se apropriado de símbolos e discursos religiosos.

Na ocasião, Castro disse que o ato não ficaria impune. “Não foi confronto, foi terrorismo, assassinato daquelas pessoas (...) A inteligência fala que chegamos muito perto de um grande líder dessa facção e por isso decidiram atirar nas pessoas deliberadamente para dispersar a ação da polícia”.

Foi quando o governador pediu a Lula (PT) a ajuda do governo federal. “Essas armas e drogas não são produzidas no Rio de Janeiro. Essas armas entram por portos e aeroportos federais", disse Castro ao justificar a responsabilidade federal no cenário.

Em resposta à reportagem, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) de Lula informou que, desde outubro de 2023, mantém operações no Rio de Janeiro por meio da Força Nacional de Segurança Pública, conforme a Portaria MJSP nº 766, com término previsto para março de 2025.

Disse que cerca de 300 agentes foram destacados para apoiar a Polícia Rodoviária Federal (PRF) no combate ao roubo de cargas e veículos e que até novembro de 2024, o investimento foi de R$ 20 milhões. Citou uma operação conjunta que teria resultado na redução de 29% nos roubos de cargas no estado e mencionou a recuperação de veículos, apreensões de armas e drogas, e a detenção de 1.253 pessoas. Disse ainda que, o Rio de Janeiro recebeu R$ 242 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública entre 2019 e 2024, com previsão de R$ 45,9 milhões para 2025. Em fevereiro, o governador do Rio solicitou ao MJSP a alocação de líderes criminosos em presídios federais.

O governador, no entanto, lembrou das vulnerabilidades das fronteiras e disse que somente no ano passado foram apreendidos mais de 500 fuzis e 55 toneladas de drogas no estado. Ele disse que desde o início do seu governo, foram quase 1,8 mil fuzis tirados de circulação.

Como líder de facção no Complexo de Israel pode ser enquadrado como terrorista

As investigações da PF contra o TCP já indicam Peixão como um possível terrorista. “Apenas classificá-lo assim e não o captura-lo, isolar ele do comando criminoso não é uma alternativa”, alerta o especialista em segurança pública e investigador aposentado das forças federais da segurança, Sergio Leonardo Gomes.

Segundo fontes ligadas às investigações, a PF investiga a atuação violenta e desmedida atingindo inocentes e civis e, sobretudo ao enquadramento como terrorista do líder do TCP, considerando sua motivação religiosa para tais atos.

Isso porque a Lei Antiterrorismo no Brasil (13.260/2016) define o que é considerado terrorismo e estabelece punições para quem cometer esses atos. No que diz respeito à religião, a lei traz uma ressalva com o intuito de garantir a liberdade religiosa e evitar perseguições injustas. O artigo 2º, parágrafo 2º, a lei deixa claro que não se enquadram como terrorismo as manifestações políticas, sociais, sindicais, religiosas ou de classe, desde que não tenham a intenção de causar terror generalizado, ato este que segundo a PF o traficante ligado ao TCP pode se enquadrar.

A lei determina que práticas e manifestações religiosas não podem ser enquadradas como terrorismo, desde que não sejam utilizadas como meio para promover violência ou disseminar terror, como tem feito a organização criminosa fluminense.

A Lei determina que, se uma organização religiosa ou grupo usar a religião como justificativa para praticar atentados, ameaçar a segurança pública ou incitar violência, seus membros podem ser responsabilizados criminalmente pela prática de terrorismo com condenações que variam de 12 a 30 anos de prisão, além de outras penas correspondentes a crimes conexos, como homicídio, lesão corporal, destruição de patrimônio, entre outros.

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Apesar de estar avançando à cena criminosa nacional nos últimos anos, no mês de fevereiro o TCP ganhou protagonismo em duas ocorrências alarmantes que colocaram a segurança pública do estado em alerta pleno. Um embate fervoroso entre as duas facções no Rio de Janeiro, o Terceiro Comando Puro e o Comando Vermelho, com intensa troca de tiros, marcou a tentativa de o TCP dominar o Morro do Juramento, hoje dominado pelo CV.

Poucos dias depois, a Polícia Militar fez uma caçada ao bando ligado ao TCP, mas procurava sobretudo o homem apontado como líder do Terceiro Comando Puro. Conhecido também como “traficante gospel”, outro apelido de Peixão.

Segundo o secretário de estado da Segurança Pública do Rio de Janeiro, Vitor Santos, a Lei Antiterrorismo prevê que se os crimes praticados tenham uma conotação religiosa, como o caso de Peixão e o TCP, a legislação específica pode ser aplicada. “Um deles é atentar contra a vida ou a integridade física de pessoas. Na prática [a Lei Antiterrorismo], prevê crime imprescritível [nunca expira], ao ponto que a pena que, para o tráfico varia de cinco a 15 anos, para o terrorismo começa com 12 e vai a 30 anos, isso sem contar com outros crimes correlatos ao ato”, atenta o secretário.

Isso porque, além da disputa de territórios para o tráfico, Peixão revela motivações religiosas para torturar e matar desafetos que não seguem sua linha ou pensamento religioso. “A bandeira com a Estrela de Davi, por si só, já é uma visão distorcida da religião. O traficante se diz cristão e a Estrela de Davi é um símbolo do judaísmo”, reitera o antropólogo, Alexandre Zeni.

O pesquisador avalia que o termo "Soldados de Jesus" na relação entre religião e crime revela algumas perspectivas de violência e poder nas comunidades dominadas por facções. “A apropriação religiosa é uma estratégia de poder,o uso da religião por facções criminosas pode ser entendido como uma forma de legitimação e controle social. Assim como no passado criminosos recorriam a santos ou entidades para proteção espiritual, agora há uma reconfiguração para algo refletindo a expansão de algumas religiões. A denominação "Soldados de Jesus" reforça uma identidade coletiva e dá uma aparência de missão divina à violência e ao domínio territorial”.

Outro aspecto lembrado por ele diz respeito a outro termo que vem sendo utilizado para destacar esses grupos criminosos: o narcopentecostalismo também com foco no controle social. “O conceito de narcopentecostalismo ou traficrentes sugere que grupos criminosos se apropriam da linguagem e da estética religiosa para exercer poder sobre as comunidades.

A imposição de normas morais, como a proibição de cultos de outras religiões que não as defendida por eles, serve tanto para reafirmar autoridade quanto para criar um ambiente social no qual o crime se mescla com uma suposta missão de purificação do território”, reforça.

O especialista alerta ainda para a religião como forma de coesão e suposta disciplina, tendo em vista que o crime organizado se estrutura em hierarquias rígidas e códigos de conduta. “A adoção de símbolos religiosos e a ideia de que os traficantes são "Soldados de Jesus" podem funcionar como um mecanismo de disciplina interna, justificando a violência contra rivais e garantindo lealdade ao grupo. Isso também contribui para evitar deserções, pois se cria uma identidade que mistura fé e pertencimento ao grupo criminoso” .

Para o sociólogo Marcelo Almeida, as comunidades também aparecem neste contexto como espaços de disputa simbólica. “O domínio do tráfico em determinadas comunidades não se dá apenas pela força bruta, mas também pelo controle sobre a cultura e a espiritualidade dos moradores. Ao estabelecerem uma identidade religiosa dominante, essas facções consolidam seu poder e impõem uma narrativa que reforça a exclusividade de sua presença".

Para o especialista, isso se manifesta nas restrições a outras manifestações religiosas e a disseminação de uma visão messiânica do grupo criminoso. "No meio disso tudo fica a população, refém dos criminosos com um Estado inoperante”.

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