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Discussão e votação de propostas no plenário da Câmara dos Deputados
Discussão e votação de propostas no plenário da Câmara dos Deputados| Foto: Zeca Ribeiro / Câmara dos Deputados

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse, após sua eleição, que o chamado orçamento secreto, ou emendas de relator, era "a maior bandidagem já feita em 200 anos de República". Passados oito meses de governo, o instrumento adquiriu nova roupagem, turbinando o poder do Congresso sobre o orçamento.

Segundo levantamento da assessoria parlamentar do Partido Novo, neste ano as emendas parlamentares (R$ 36,5 bilhões) somadas aos R$ 9,8 bilhões redistribuídos do orçamento secreto representarão 23% do total de gastos discricionários do governo, ou seja do dinheiro que o Executivo tem livre para gastar como quiser. A relação é 6,3 pontos percentuais maior do que a registrada em 2022.

Os dados levam em conta a execução orçamentária dos anos anteriores e previsão de pagamento até dezembro deste ano, já considerando as verbas distribuídas em novas rubricas, após a decretação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no ano passado, da inconstitucionalidade das emendas de relator (RP9), que constituíam o chamado orçamento secreto.

De acordo com o levantamento, o aumento de volume destinado a emendas do Legislativo se intensificou a partir de 2014, quando foram surgindo novas modalidades de emendas. Primeiro foram as individuais (RP6). Em 2018 surgiram as emendas de Comissão (RP8) e em 2020 as emendas de relator (RP9).

O volume destinado às emendas, em 2014, representava 0,09% do total discricionário. Em 2022, a soma das emendas individuais, de bancadas estaduais, de comissões e de relator-geral (RPs 6, 7, 8 e 9, respectivamente) representou 16,91% do mesmo orçamento. "Já foi um salto gigantesco", avalia o deputado Gilson Marques (Novo-SC).

Para este ano, a previsão é de que cheguem a 23%, ou seja, a aproximadamente R$ 45 bilhões, do total de R$ 195 bilhões do orçamento discricionário. "O Congresso está ficando mais caro", constata o deputado.

Fontes parlamentares ligadas ao orçamento ressaltam, no entanto, que nem toda verba de dotação se transforma efetivamente em recursos transferidos e pagos ao final do exercício. Mas o aumento da porcentagem é indicativo inequívoco do incremento dos instrumentos de emendas parlamentares.

Partidos do "Centrão" cobram mais caro para apoiar governo

O pano de fundo deste cenário é a tentativa, por parte do governo Lula, de aumentar sua base aliada para garantir a aprovação de pautas de interesse do Executivo no Congresso. Além de emendas, o preço dos partidos do chamado "Centrão" para o apoio à gestão petista passa por cargos de primeiro e segundo escalão, que tem propiciado a novela da minirreforma ministerial que se arrasta sem definição.

Lula ainda não conseguiu um formato para garantir a sobrevivência de seus ministros petistas e acomodar as reivindicações dos partidos de oposição que cobiçam alguns dos mais proeminentes ministérios, com grandes orçamentos e potencial de emendas a serem distribuídas.

O orçamento secreto foi assim denominado por repassar recursos federais para estados e municípios sem nenhum critério de distribuição ou transparência sobre os autores das emendas. O STF decretou a inconstitucionalidade desse instrumento no final do ano passado, mas o Congresso conseguiu recuperar, por meio de manobras legislativas, as verbas previstas para o Orçamento de 2023.

Do total desses recursos, de R$ 19,4 bilhões, metade foi para o controle dos ministros de Estado da gestão petista (RP2) e a outra metade engordou as emendas individuais (RP6) dos deputados e senadores, por meio de comissões, cujas coordenações foram alvo de disputas devido ao poder de indicação dos repasses.

Em ambos os casos, a transparência não está contemplada. Parte dos recursos foi destinada para ações já previstas pelo governo anterior ou a novos programas, sem divulgação dos beneficiados.

Segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, com os recursos herdados, o governo priorizou os redutos eleitorais do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), dos próprios ministros e de outros aliados. Dados do Siga Brasil, sistema mantido pelo Senado, mostraram que, em alguns casos, o dinheiro caiu na conta das prefeituras 24 horas depois de ter sido reservado no orçamento. Normalmente, o dinheiro empenhado só é efetivamente pago no ano seguinte.

Essas transferências especiais, conhecidas como emendas PIX, são originárias das emendas individuais impositivas e não estão atreladas a nenhuma proposta ou convênio para sua execução. São transferidas diretamente para conta de um beneficiário, estado ou município. Segundo dados do Partido Novo, a modalidade aumentou 10 vezes de 2020 a 2023 e, atualmente, representa 1/3 do total disponibilizado por emendas individuais.

Durante os primeiros oito meses de governo, Lula também autorizou o pagamento de R$ 2,8 bilhões em emendas de relator que haviam sido empenhadas nos anos anteriores. O STF permitiu o pagamento dessas verbas, exigindo que o governo estabelecesse critérios técnicos.

Alagoas, reduto do presidente da Câmara, recebeu 21% de verbas da Saúde

Dos R$ 9,8 bilhões remanescentes do orçamento secreto, atualmente alocados em RP2 (gastos discricionários sob controle dos ministérios), R$ 2,7 bilhões já foram empenhados. Desses, R$ 1,36 bilhão foi alocado pelo Ministério da Saúde, sendo Alagoas o estado mais beneficiado com essas verbas.

Segundo dados do Siap, sistema principal de contabilidade da União, fonte do levantamento do Novo, R$ 285 milhões (21% dos R$ 1,36 bilhão empenhado via Ministério da Saúde) foram enviados a municípios de Alagoas, reduto do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O valor recebido foi três vezes maior que o destinado a São Paulo (R$ 85,5 milhões). Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o dinheiro foi reservado em um dia e efetivamente transferido no dia seguinte para a prefeitura de Maceió, que intermediou o repasse para um hospital administrado por uma prima de Lira.

O Ministério da Saúde argumenta que o dinheiro liberado não é de emenda. Como estratégia de repasses, a pasta baixou a Portaria 544/23, com critérios para os municípios receberem os verbas. As prefeituras cadastraram propostas e o governo decide para onde vai o dinheiro. Prefeituras administradas por aliados de Lira - e que já protagonizaram escândalos do orçamento secreto, como Rio Largo, Canapi e Barra de São Miguel - foram o destino de parte dos recursos.

Outros R$ 124 milhões em verbas do Ministério da Integração foram destinados à superintendência da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) em Alagoas. O órgão é comandado desde 2021 por João José Pereira Filho, o Joãozinho, que é primo de Lira. O dinheiro vai financiar obras em dez cidades do estado, nove delas governadas por aliados do presidente da Câmara.

Mato Grosso, Pará e Piauí também estão entre os recordistas

Do Ministério da Agricultura, dos R$ 277,5 milhões liberados em RP2, praticamente a metade, R$ 135 milhões, foi parar em Mato Grosso, reduto do ministro Carlos Fávaro (PSD). Em julho, o órgão destinou R$ 5,3 milhões para a manutenção de estradas de terra em Canarana (MT). Ao mesmo tempo, o estado vizinho, Mato Grosso do Sul que também é um centro de produção agrícola, recebeu apenas R$ 473 mil. E para o Rio Grande do Sul, que também é importante produtor agrícola, foram destinados R$ 4,2 milhões.

O Ministério do Desenvolvimento Regional repassou ao Piauí 42% dos recursos totais da pasta em RP2 empenhados até fim de agosto. O relator geral do Orçamento, senador Marcelo Castro (MDB), que é do Piauí, incluiu as verbas na peça orçamentária.

Das verbas da Educação, o ministro Camilo Santana (PT) destinou metade do dinheiro da pasta em RP2 para o Ceará. Foram R$ 4,8 milhões de um total de R$ 9,8 milhões. Jader Filho (MDB), ministro das Cidades, priorizou o Pará, seu reduto eleitoral, com 39% dos R$ 146,9 milhões destinados ao antigo orçamento secreto. No Desenvolvimento Social, o Piauí, estado do ministro Wellington Dias, foi o terceiro maior beneficiado, com R$ 35,6 milhões.

Tudo isso aconteceu sem transparência sobre os verdadeiros responsáveis pelas indicações. Tecnicamente, as despesas RP2 não são emendas parlamentares e os ministérios têm controle sobre a sua distribuição. Porém, o governo Lula vem usando a distribuição desse dinheiro para negociar com o Congresso.

Reportagem do site Metrópoles mostrou recentemente um documento de "prestação de contas" apresentado por assessores palacianos a vice-líderes de partidos na Câmara para demonstrar que o governo estava atendendo às demandas de aliados na Casa. O índice incluía, segundo mostrou o site, a situação das verbas de RP2 A4, que são a forma como os R$ 9,8 bilhões remanejados das extintas emendas de relator estão identificados no orçamento.

Um assessor parlamentar que não quis ser identificado nesta reportagem afirma que a falta de transparência das extintas emendas de relator continua ocorrendo por meio da negociação das emendas controladas pelo Executivo e das comissões temáticas do Senado. "É a mesma lógica das emendas RP9, declarada inconstitucional. O orçamento secreto está maior e mais secreto", resume.

Centrão fisiológico não vai ceder poder

Para o cientista político Eduardo Grin, da FGV EAESP, as dificuldades do governo Lula e o "encarecimento" do apoio não se deve à atual composição do Congresso, mas às mudanças de regras que caracterizam a relação dos poderes na última década. O marco mais significativo, para ele, foi 2015, quando o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, aprovou por proposta de emenda constitucional (PEC) as emendas individuais obrigatórias, no auge da crise com o governo da então presidente Dilma Rousseff (PT).

"Até então, o governo podia pagar ou não, e na hora apropriada. Tinha poder de barganha junto às votações de interesse. E o governo jogava com isso", explica Grin.

Em 2019, a aprovação das emendas de bancadas, também obrigatórias, fortaleceu ainda mais os partidos. Por fim, em 2020, as emendas do relator, aprovadas no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), alteraram de vez a balança de poder em favor do Parlamento.

"Isso tem aumentando o preço da fatura". Paralelamente, o Centrão tem se aproveitado para cobrar o preço a cada votação importante. "Há um profundo senso de oportunismo do Congresso e será difícil colocar o gênio de volta à garrafa", avalia o cientista político.

Para o deputado federal Maurício Marcon (Podemos-RS), existe uma parcela de deputados que se elegeu com base numa imagem conservadora, mas que no fundo é fisiológica e está impondo "um preço mais alto" para votar com o governo. "Mas há uma parte inegociável que não se vende por emendas", garante o deputado, que está preparando um projeto para dar transparência e efetividade às emendas no seu estado.

Além disso, o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) também protocolou uma proposta para barrar a distribuição de emendas orçamentárias a parlamentares durante semanas de votações importantes no Congresso. Somente em julho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) liberou R$ 11,8 bilhões em emendas para influenciar o voto no Senado e na Câmara dos Deputados.

"A PEC tornaria crime de responsabilidade fiscal a utilização dessa emenda parlamentar com esse desvio de finalidade”, disse o deputado à Gazeta do Povo. A proposta precisa de 171 assinaturas dos deputados para que possa começar a tramitar.

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