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Arquivos em sigilo

Impasses jurídicos e medo do STF retardam divulgação de provas de Tagliaferro sobre Moraes

Alexandre de Moraes
Comissão de Segurança Pública (CSP) realiza reunião para deliberação de providências sobre as denúncias de Tagliaferro. (Foto: Saulo Cruz/Agência Senado)

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A divulgação das provas sobre as denúncias feitas no Senado pelo perito Eduardo Tagliaferro, ex-assessor do ministro Alexandre de Moraes, está emperrada há cerca de duas semanas. Em 3 de setembro, ele compareceu à Comissão de Segurança Pública e relatou perseguições políticas e ao menos uma fraude em processos conduzidos pelo ministro. Mas os 149 documentos entregues pelo delator não foram divulgados na íntegra porque envolvem investigações sob sigilo — e os parlamentares admitem receio de se tornarem alvos do STF caso liberem o material.

Parecer jurídico trava divulgação completa das provas

Um parecer da Advocacia do Senado, ligada diretamente ao presidente da Casa, Davi Alcolumbre (União-AP), destacou que não é possível tornar os arquivos públicos porque eles “apresentam origem, natureza e conteúdo heterogêneo, não havendo como a advocacia atestar de forma segura e categórica se cada um deles está ou não submetido a regime de sigilo legal, processual ou judicial”.

“Sabe-se, porém, que tais documentos fazem parte de inquéritos instaurados no Supremo Tribunal Federal (...) É possível afirmar que a documentação apresentada é em parte de natureza sigilosa, em investigações em curso, e deve ser tratada com a máxima cautela”, afirma o parecer. Ou seja, como boa parte dos inquéritos sob relatoria de Alexandre de Moraes ainda tramita em sigilo, a divulgação integral poderia colocar o Senado em rota de colisão direta com o STF.

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As alternativas propostas pela Advocacia do Senado

Entre as alternativas apontadas pela Advocacia do Senado estavam: arquivar o material, manter os dados sob regime de sigilo com eventual realização de reunião secreta ou encaminhar a documentação somente a autoridades competentes — como o Supremo, o Ministério Público ou magistrados responsáveis por habeas corpus já em andamento. Caberia então a essas instâncias decidir se e como os documentos poderiam ser usados nos processos.

O parecer citou como precedente a Operação Spoofing — que revelou mensagens obtidas de forma irregular envolvendo integrantes da Lava Jato. Naquele caso, o STF autorizou às defesas dos réus o acesso aos dados, entendendo que, mesmo com origem controvertida, as informações poderiam beneficiar réus. A recomendação é que as provas de Tagliaferro sigam a mesma lógica: não devem ser descartadas, mas só podem ser analisadas sob decisão judicial.

Por fim, os advogados do Senado sugeriram notificar entidades com interesse legítimo na defesa dos afetados, como a Defensoria Pública da União (DPU) ou advogados de réus do 8 de Janeiro, comunicando a existência do material — mas sem o envio das provas. Assim, caberia a essas partes buscar acesso pela via judicial, possivelmente recorrendo ao STF para obter autorização formal de acesso às provas.

Comissão opta por relatório parcial e notifica autoridades nacionais e internacionais

Diante dessas limitações, a Comissão decidiu elaborar um relatório preliminar, aprovado em 11 de setembro, que resume as denúncias, mas não inclui as provas completas. O documento foi enviado ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso; à presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Cármen Lúcia; ao procurador-geral da República, Paulo Gonet; e ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Beto Simonetti.

Também receberam cópia do relatório embaixadas dos Estados Unidos, Itália, Polônia, Espanha, Paraguai, Argentina, além da União Europeia. O envio à embaixada americana levantou a hipótese de impacto internacional, inclusive com possíveis sanções.

Acesso restrito e cautela marcam posição dos senadores

O presidente da Comissão, senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), confirmou o encaminhamento do relatório. No entanto, ele reforçou que os documentos sigilosos permanecerão guardados na própria Comissão de Segurança Pública e que até mesmo os senadores do colegiado só poderão consultá-los mediante usuário e senha, em sistema restrito semelhante ao adotado em CPIs.

“Estamos dando visibilidade a essas denúncias do Tagliaferro. Já comunicamos vários ministros e órgãos de controle. Agora, o acesso ao material sigiloso só poderá ser feito com decisão judicial”, disse à Gazeta do Povo.

Segundo o parlamentar, a Defensoria Pública da União também foi notificada sobre a existência do material, caso queira usá-lo em defesa de réus do 8 de Janeiro.

Questionado sobre possíveis sanções dos EUA, Flávio afirmou: “Não tem como avaliar isso. É o governo americano que faz essa avaliação. Se tiver interesse, vai peticionar autorização judicial para ter acesso a esse material. Não sei se Tagliaferro já não mandou isso para o mundo inteiro”, comentou.

Na audiência no Senado, o próprio perito disse ter enviado cópias a interlocutores nos Estados Unidos.

Além do envio do relatório a autoridades e diplomatas, a Comissão encaminhou ofício ao governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), pedindo medidas para garantir a segurança da família de Eduardo Tagliaferro. O documento foi assinado por Flávio Bolsonaro, mas até agora não houve resposta oficial do governo paulista sobre providências adotadas.

O que mostra o relatório preparado pelo Senado

Entre os pontos levantados, o relatório pede a suspensão cautelar de todas as ações penais relacionadas ao 8 de Janeiro, sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes. A Comissão argumenta que os processos podem estar contaminados por vícios materiais e formais, diante das denúncias apresentadas.

O senador Eduardo Girão (Novo-CE), integrante do colegiado, afirma que a dificuldade para liberar o acesso às denúncias de Tagliaferro não é política, mas jurídica. “Não é falta de interesse da Comissão. É limitação legal de divulgar nomes, CPFs, endereços, dados sensíveis. Mesmo com tarjas, o Senado teme vazamentos. O presidente da Comissão ( tem interesse em dar transparência, mas depende da Advocacia do Senado. Mesmo sem os dados sensíveis, já há informações fortes que justificariam, no mínimo, a suspensão desses julgamentos, que parecem uma execução sumária em praça pública”, explicou o líder do Novo no Senado.

Girão criticou ainda a parcialidade de ministros envolvidos nas ações do 8 de Janeiro: “Entre os julgadores, há quem tenha declarado opiniões políticas ou até atuado como advogado pessoal do presidente Lula. Isso compromete a legitimidade e mostra falta de independência.”

Já o senador Magno Malta (PL-ES) informou que todas as provas serão divulgadas assim que forem periciadas para garantir autenticidade e integridade. "Embora sejam de interesse público, a divulgação integral e imediata poderia comprometer a verificação técnica. Aliás, órgãos nacionais e internacionais que receberam o relatório parcial podem solicitar acesso ao material completo", disse.

Parlamentares da Comissão admitem, nos bastidores, temer represálias caso liberem integralmente as provas. O próprio presidente do colegiado, senador Flávio Bolsonaro, afirmou em audiência no dia do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no STF que receava ser incluído em um inquérito da Corte se houvesse divulgação ampla dos documentos. Esse clima de cautela reforça a pressão sobre o Senado, que busca equilibrar a transparência com a preservação da segurança jurídica e pessoal dos envolvidos.

Especialistas analisam impacto jurídico e político das denúncias

Para o advogado e juiz Adriano Soares, “as provas apresentadas pelo denunciante [Tagliaferro], acompanhadas de sua própria palavra, têm valor legal”. Ele explica que os testemunhos têm “valor jurídico” e “podem subsidiar uma apuração no Supremo, um processo de impeachment no Senado ou até análise em tribunais internacionais de direitos humanos.”

Soares explica que o relatório preliminar funciona como uma síntese política e institucional do que foi denunciado, sem trazer os detalhes que estão sob sigilo. Em outras palavras, o documento entregue às autoridades indica a gravidade das acusações, cita exemplos já divulgados pela imprensa e aponta que há provas materiais em análise — mas não anexa arquivos que contenham nomes, dados pessoais ou informações processuais que dependem de decisão judicial para se tornarem públicos.

Possibilidade de suspensão dos processos do 8 de Janeiro é limitada

Segundo Soares, a possibilidade de suspensão das ações judiciais relacionadas ao 8 de Janeiro é limitada: “As ações estão submetidas à jurisdição do Supremo Tribunal Federal. Uma suspensão geral não existe previsão legal. Cada processo poderia discutir eventual nulidade, mas suspender por suspender não há viabilidade jurídica.”

Por outro lado, o advogado e professor André Marsiglia afirma que “é possível pedir a suspensão de ações e até a revisão de julgados, porque, se as decisões foram baseadas em provas produzidas ilicitamente para prejudicar réus, estamos diante de nulidade absoluta”.

“A jurisprudência admite o uso de provas irregulares quando é para beneficiar o acusado”, acrescentou.

Marsiglia ainda reforça que a divulgação internacional pode reforçar pressões externas: “Essas denúncias podem robustecer relatórios nos Estados Unidos, que já embasam sanções, e também servir de base para questionamentos na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Isso reforça a imagem do Brasil como um caso de censura.”

Relembre as acusações de Tagliaferro contra Alexandre de Moraes

O perito Eduardo Tagliaferro, ex-assessor do ministro Alexandre de Moraes no TSE, fez uma série de denúncias durante audiência da Comissão de Segurança Pública do Senado, realizada no dia 2 de setembro. Ele afirmou que Moraes direcionava politicamente investigações para perseguir parlamentares, influenciadores e cidadãos ligados à direita, enquanto críticos e militantes da esquerda não eram alvos.

Segundo ele, nomes, vídeos e publicações eram enviados pelo ministro à sua equipe para elaboração de relatórios que embasavam ações contra apoiadores de Jair Bolsonaro (PL), incluindo a própria família do ex-presidente. O ex-assessor disse ainda que havia monitoramento de redes sociais, com atenção especial a contas com mais de mil visualizações e que demonstravam simpatia a conteúdos críticos ao sistema eleitoral.

A estratégia, segundo ele, seria tornar opositores “inelegíveis”. Tagliaferro também acusou Alexandre de Moraes de usar a Polícia Federal como instrumento de interesse pessoal e de montar processos “ao inverso”, criando justificativas após as ações.

O delator disse que Moraes e o procurador-geral da República, Paulo Gonet, teriam combinado previamente alvos de investigações e atuado juntos na produção de documentos e relatórios com datas retroativas, usados para justificar operações já realizadas. A PGR não se pronunciou sobre as alegações.

O gabinete de Alexandre de Moraes negou qualquer irregularidade e declarou que todos os atos e procedimentos mencionados foram conduzidos de modo regular, oficial e devidamente documentados nos autos. Segundo nota divulgada à imprensa, o gabinete de Moraes disse que as requisições e determinações encaminhadas a órgãos como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) seguiram normas regimentais.

A Gazeta do Povo entrou em contato com as autoridades que receberam o relatório parcial das denúncias para saber algum posicionamento, mas ainda não teve retorno. Apenas a assessoria da PGR informou que "eventuais manifestações sobre o documento serão feitas pelo procurador-geral da República em momento oportuno".

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