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Captain Fantastic: um belo erro, mas ainda assim um erro

Vi no primeiro dia deste ano de 2017 o filme “Captain Fantastic”, com Vigo Mortensen, que conta a história de uma família um tanto estranha, criada em meio à floresta do Noroste Pacífico, completamente isolada do resto da sociedade. O pai e a mãe são uma espécie de casal hippie, mas que transmite aos filhos profundo conhecimento sobre diversas áreas do saber, desde física até literatura, além de os treinar para sobreviver na selva, caçando animais, escalando montanhas, como uma tribo de nômades.

A mensagem não deixa de ser uma dura crítica à sociedade moderna, com muitos “doentes” que comem demais até ficarem obesos, com adolescentes que só querem jogar vídeo game e não sabem nada do que supostamente aprendem nas escolas, com crianças que acham que o frango da refeição “brota” do supermercado, com gente freneticamente comprando no shopping. Os filhos do ermitão Cash não são nada assim. São extraordinários, analisam com maestria o livro Lolita, aprendem a argumentar sobre tudo, conseguem descrever com perfeição o teor e o sentido do “Bill of Rights”, mesmo com 9 anos.

Não obstante, alguma coisa falta… A morte da mãe, uma bipolar, produz efeitos em cadeia, que colocam o pai e toda sua filosofia de vida em xeque. Um dos filhos adolescentes transborda em sua revolta, culpa o pai por tudo, e num determinado momento explode: “Por que não podemos ser como as outras famílias normais e celebrar o Natal? Que tipo de maluco comemora o aniversário de Noam Chomsky?”

Sim, o pai era naturalmente contra o “sistema”, repudiava a sociedade consumista capitalista, os “fascistas” que manipulavam a democracia (e o telespectador logo pensa em Trump em vez de no casal Clinton, de forma equivocada), e festejava o aniversário do intelectual Chomsky, um “grande humanitário”. Sério? Um antiamericano que sempre bajulou os piores tiranos socialistas, que defendeu Hugo Chávez e até justificou o terrorismo islâmico, jogando a culpa nos Estados Unidos, isso sim! Mas para aquela família “fantástica”, o homem era um santo!

O pai pede para o filho sustentar seu ponto com argumentos, de por que a família deveria celebrar um mito de um fantasma em vez de um grande pensador. O garoto, acuado, vai embora. A “lógica racional” venceu, aparentemente. Mas a sensação de que algo está muito errado ali continua. E se intensifica quando eles passam a noite na casa dos parentes, a caminho do funeral da mãe. A família da sua irmã que os recebe é normal, e pode não ter tanto conhecimento acumulado, mas tem mais sabedoria, muito mais tato. Como disse Karl Kraus: “Refreia as tuas paixões, mas toma cuidado para não dar rédeas soltas à tua razão”.

O pai não esconde nada dos filhos, sempre diz a verdade, inclusive com detalhes em demasia, como quando explica sobre a morte da mãe deles. Já a irmã alega que ocultar certos detalhes de crianças não é mentir, e sim ter sensibilidade, e questiona de que serve tantas habilidades de sobrevivência na selva se os garotos não vivem em sociedade, nada sabem sobre coisas básicas, como namorar. O filho mais velho é um “gênio” que foi aceito por todas as melhores universidades, mas não passa de um bobão quando uma garota bonita se aproxima dele. Que educação é essa?

A opção da família não foi apenas pelo homeschool, e sobra crítica a quem escolhe esse caminho também, normalmente por motivos religiosos de pais preocupados com a doutrinação ideológica e os ataques ao cristianismo nas escolas modernas. Quando eles são parados pela polícia, simulam ser uma família “tradicional” que faz homeschool, ou seja, um bando de evangélicos fanáticos. Não era o caso da família “fantástica”, que tinha Chomsky como guru em vez de Jesus.

Não vou comentar o final para não ter spoiler para quem ainda não viu o filme e ficou interessado. Mas o ponto central aqui é a infantilidade de quem se recusa a aderir ao “sistema”, ou seja, de quem banca o eterno rebelde revolucionário em busca de utopias. O pai reconhece: foi um belo erro, mas ainda assim um erro. O experimento que fizeram com seus filhos, por não serem capazes de se adequar à sociedade, mostrou-se simplesmente monstruoso.

Claro que, por termos a perspectiva da própria família na narrativa, passamos a gostar deles, a procurar compreensão e até beleza naquela união, cumplicidade, amor. Mas quem melhor explica é a filha adolescente, quando falava de Lolita: o autor nos transmite a perspectiva do velho, e por isso somos compassivos e enxergamos amor onde há um molestador de crianças, um pedófilo. No caso, vemos amor onde há profundo egoísmo de dois hippies, sendo ela uma bipolar doente, que sacrificam os filhos no altar de suas utopias infantis.

As críticas à sociedade moderna continuam válidas. Somos mesmo muito consumistas, nossas escolas têm ensinado muita porcaria que os alunos sequer absorvem, há excesso de peso na maioria e poucos teriam condições de sobreviver na natureza. Mas achar que a solução é virar as costas para a sociedade e regressar ao estilo de vida nômade, caçador e coletor, abrindo mão da civilização, mesmo com todos os seus defeitos, isso é uma tremenda de uma bobagem.

Um “belo” erro, mas ainda assim um erro. Cruel com os filhos, e que pode ser fatal. Por muita sorte não foi nesse caso. Mas o susto foi grande, suficiente para um despertar que eu chamaria simplesmente de amadurecimento. Na vida real, porém, as coisas não costumam acabar bem. Principalmente quando os utópicos não se limitam a fazer experimentos com seus filhos, mas tentam forçar sua visão infantil de mundo a toda sociedade.

Rodrigo Constantino

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