
Alguns leitores já tinham me recomendado o filme “O doador de memórias”, comentando que lembraram de mim durante a película. Fui ver hoje, e entendo perfeitamente o motivo pelo qual pensaram no meu nome vendo o filme. Trata-se de um ataque direto às utopias igualitárias que tanto combato aqui, uma mistura de 1984 de Orwell com Admirável Mundo Novo de Huxley.
O público-alvo é o adolescente e o jovem, concorrendo com filmes como “Jogos Vorazes” e “Divergente”. Vi ambos, pois tenho filha adolescente, e considero “O doador de memórias” bem superior, ao menos para os mais velhos. Tem menos ação e menos romance, mas tem mais conteúdo e uma mensagem mais importante e profunda.
Uma breve sinopse do filme: os anciãos, cansados de tanta desgraça, tanta guerra, miséria, violência, após aquilo que ficou conhecido como a Ruína, resolveram criar um mundo novo, igualitário, protegido dessas memórias do passado. Nesse aspecto, muito similar ao filme “A vila”, que também recomendo.
Desde cedo tudo é programado para impedir as desavenças, a inveja, a revolta. Eles tomam doses diárias de uma injeção que garante o clima tranquilo, e cada um segue sua vida determinada. Mas mesmo com todos os cuidados, é possível perceber que sempre haverá algo que o outro tem e você não, como o olhar diferente de uma garota, o que é suficiente para suscitar a inveja. Mesma mensagem de “Círculo de fogo”, que também recomendo.
Vida não é bem a palavra para definir o que ocorre ali. É tudo cinza, sem cor. Literalmente, para o espectador sentir o quão insosso é aquilo. Se não há desgraças, não há também amor, diversão genuína, fortes emoções. É tudo desprovido de sentimentos, de vida. Cada um com sua bicicleta exatamente igual.
A linguagem é “precisa”, ou seja, politicamente correta, e palavras indesejáveis foram abolidas para não correrem o risco de se sentirem ofendidos com nada. Faltam cores pois a ideia é combater qualquer desigualdade, qualquer diferença. Tudo é igualmente medíocre no mundo da mesmice.
Até que um jovem, escolhido como o novo “recebedor” das memórias do passado, começa a experimentar como era a vida antes dessa tábula rasa artificial. E não consegue mais abrir mão do que conheceu, mesmo tendo momentos de horror ao vivenciar o lado ruim dessas emoções, as guerras, as mortes banais, a falta de compaixão. Seu tutor, personagem de Jeff Bridges, apresenta-lhe uma vida de verdade, com música, com festas, com paixão, e também com mortes, com sofrimento e dor.
Mas a anciã líder, personagem de Meryl Streep, não quer saber desse passado, das tradições, do estoque de conhecimento. Quando o homem tinha a liberdade de escolha, diz ela, ele sempre escolhia errado. Não há qualquer fé sua na humanidade, no amor, na capacidade de o ser humano fazer o que é certo. É preciso transformá-lo, então, em uma espécie de autômato, de robô domesticado, para evitar catástrofes. Não existe, porém, catástrofe maior do que tal “perfeição”, a desumanização completa do homem.
Escrevi há poucas semanas uma resenha do livro Contra a perfeição, do professor de filosofia de Harvard Michael Sandel. Bate na mesma tecla. O afã prometeico costuma parir um inferno. Essas distopias servem de alerta para tal pretensão humana de criar um paraíso terrestre.
A banalização da morte dos bebês rejeitados, por exemplo, é um claro ataque do filme a essa mania crescente e preocupante de pais que desejam moldar seus filhos à sua imagem de perfeição, sem levar em conta suas singularidades e, sim, seus defeitos, limitações e imperfeições.
Nossa memória, tanto individual como coletiva, é fundamental para definir nosso futuro. O passado é parte de nosso presente. Uma mensagem bastante conservadora, contra aqueles que acham que podem, de forma arrogante, simplesmente passar uma borracha para trás e desenhar lindas coisas em uma tela em branco. A natureza humana cobra um alto preço por tal equívoco.
Assim que entrei no carro após o filme, liguei o rádio e tocava “Comida”, do Titãs. Música bastante adequada ao tema do filme. Afinal, como diz a letra:
A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte
A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer
[…]
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer dinheiro
E felicidade
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer inteiro
E não pela metade
Exatamente. Queremos inteiro, e não pela metade! A vida com o que ela traz, tanto de alegrias, como dos inevitáveis sofrimentos. Queremos mais do que dinheiro e comida; queremos arte. Temos sede de vida. Não nos basta apenas sobreviver, feito marionetes de um sistema que nos transforme em gado bovino. Desejamos mergulhar nas fortes emoções, mesmo que isso tenha seu lado ruim. É isso que nos torna humanos. É isso que os igualitários progressistas querem destruir.
Rodrigo Constantino



