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Os méritos do liberalismo e a tentativa de desvirtuá-lo com os “direitos humanos”
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Por Roger Scruton*

A palavra “liberal” mudou muitas vezes de significado. É atualmente utilizada nos Estados Unidos para designar aqueles que seriam descritos como “de esquerda” em termos europeus – pessoas que acreditam que o Estado deve usar seus poderes e recursos para igualar os destinos dos cidadãos, e que aceitam um maior papel do Estado na economia e na regulação da vida comum, mais do que seria naturalmente endossado pelos conservadores. Entretanto, esse uso do termo “liberal” é, de fato, contrário ao uso feito durante o século XIX quando os partidos liberais começaram a difundir a mensagem de que a ordem política existe para garantir a liberdade individual e que a autoridade e a coerção só podem ser justificadas se exigidas pela liberdade.

Religião é uma condição estática; política, um processo dinâmico. Ao passo que religiões exigem submissão inconteste, o processo político oferece participação, discussão e elaboração de leis fundadas na concordância. Assim tem sido na tradição ocidental, e, em grande parte graças ao liberalismo, essa tradição foi mantida diante da constante tentação a que assistimos hoje em dia entre os islâmicos, na forma mais vociferante, de renunciar à árdua tarefa de solução conciliatória e refugiar-se em um regime de ordens inquestionáveis.

Na ordem política, somos levados a compreender que a justiça substitui a vingança e as soluções negociadas revogam os comandos absolutos.

Cidadania é a condição das pessoas que vivem em uma sociedade consensual de indivíduos soberanos. É uma conquista preciosa da civilização ocidental que não se observa em todos os lugares no mundo de hoje, e é em grande parte incompreendida pelos islâmicos, que imaginam uma forma de obediência perfeita e inquestionável a uma lei estabelecida por Deus sobre a parte dos súditos que renunciou para sempre a própria liberdade de discordar d’Ele.

É característico dos tempos em que vivemos identificar a virtude da cidadania com o espírito democrático, incentivando dessa maneira a crença de que o bom cidadão é simplesmente a pessoa que coloca em votação todas as questões. Pelo contrário, o bom cidadão é aquele que sabe quando o voto é a forma equivocada de decidir uma questão bem como quando o voto é a forma correta. Sabe que as obrigações para com os desconhecidos podem ser violadas quando a opinião majoritária decide sozinha o seu destino. Isso é parte do que Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill tinham em mente quando nos alertaram sobre a tirania da maioria.

O propósito original por trás da invocação dos direitos naturais do liberalismo era a proteção do indivíduo do poder arbitrário.

Agora o indivíduo pode ser beneficiado ou rejeitado em virtude da classe, da raça, do posto ou da ocupação, e isso em nome de valores liberais. Por essa razão, os direitos que formam a substância das declarações internacionais refletem uma mudança profunda na filosofia liberal. A retórica dos direitos deslocou-se das liberdades para as reivindicações, e da igualdade de tratamento para a igualdade de resultados.

Noutras palavras, tal reivindicação de direitos empurra-nos, inevitavelmente, numa direção que, para muitos, não só é desastrosa em termos econômicos, mas inaceitável em termos morais. É uma direção diametralmente oposta àquela introduzida na origem da ideia de direitos humanos – direção que acarreta o aumento, e não a limitação, do poder do Estado.

A parábola cristã do Bom Samaritano impõe um enorme fardo moral sobre todos. Transferir, contudo, esse fardo moral para o Estado, dizer que o Estado deve transformar aquele dever moral em um direito do beneficiário e, além disso, em um direito contra o Estado e, consequentemente, contra a sociedade como um todo, é dar um enorme passo muito além da ideia liberal original de um Estado fundado na soberania do indivíduo.

Ao mesmo tempo, em vez de limitar o poder do Estado, os supostos direitos humanos começaram a aumentar esse poder e a chamar o Estado para se envolver, do lado dos favorecidos, em todos os conflitos. Desse modo, os direitos, que para um liberal são a condição sine qua non de uma política pacífica, tornaram-se uma declaração de guerra contra a cultura da maioria.

* Trechos do capítulo “A verdade no liberalismo”, de Como ser um conservador.

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