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Relatos selvagens: cuidado sempre com a besta humana

Pausa em política e economia para bancar o crítico de cinema, até porque tem crítico de cinema que gosta de bancar o entendido em política e economia por aí. Só espero não falar tanta besteira fora da minha área, como costuma ocorrer nesses casos. Mas vamos lá.

Fui ver nesta quarta “Relatos selvagens”, o filme argentino que conta seis histórias diferentes, mas convergindo para um ponto em comum: o ser humano é capaz das maiores bizarrices quando testado ao limite, ou em um dia de fúria.

Logo no começo, quando passam os nomes dos atores na tela, as imagens que vemos são de animais selvagens. Muito propício para lembrar que habitam em nós essas bestas, sempre à espreita, pronta para vir à tona quando nossos freios civilizatórios se tornam impotentes.

A linha que separa civilização de barbárie pode ser rompida do nada, e pode ser mais tênue do que gostaríamos. Pior são aqueles que sequer reconhecem a divisão, com medo de admitir que há civilizações mais avançadas, que de certa forma introjetaram em costumes e tradições barreiras importantes a esse lado humano, demasiado humano.

O filme é bom, e cada história tem um misto de horror e humor, drama e comédia, até porque podem se emparelhar com o benefício da distância. Remeteu-me ao clássico de Joseph Conrad, Coração das Trevas, em que o personagem principal vai parar nas selvas do Congo para descobrir “o horror, o horror” a que o ser humano é capaz longe da civilização.

Outro livro que veio à mente foi Crimes exemplares, do espanhol Max Aub. Para o autor, que relata vários casos de assassinato por motivos esdrúxulos, “Os homens são aquilo em que os tornaram, e querer considerá-los responsáveis por aquilo que os leva, de repente, a ficar fora de si é uma pretensão que não partilho”.

Para Aub, “O grande ideal já não é senão medíocre: vencer as suas pulsões”. Não é pouca coisa, quando admitimos a premissa conservadora de que somos capazes, em essência, de cometer atos bárbaros se deixados totalmente “livres”, sem os tais freios morais e legais. Ideia capturada pelo mito cristão do pecado original. Edmund Burke, o pai do conservadorismo, disse:

“A sociedade não pode existir, a menos que um poder que controle a vontade e o apetite seja colocado em algum lugar, e quanto menos exista interiormente, mais dele existirá exteriormente. Está ordenado na constituição eterna das coisas, que homens de mentes intemperantes não podem ser livres. Suas paixões forjam seus próprios grilhões.”

Quando dominado por alguma paixão incontrolável, o homem se torna uma besta selvagem. Patologia vem de paixão, não vamos esquecer. O primeiro relato de Aub é chocante pela banalidade do motivo que levou um barbeiro a matar sua vítima:

Aconteceu assim: comecei a barbeá-lo calmamente, esaboei-o com habilidade, afiei a navalha no braço da cadeira e suavizei-a na palma da mão. Sou um bom barbeiro! Nunca cortei ninguém e ainda por cima esse tipo não tinha uma barba muito espessa. Mas tinha borbulhas. Devo reconhecer que nas suas borbulhas não havia nada de especial, no entanto, incomodovam-me, enervavam-me, revolviam-me as tripas. 

A primeira, contornei-a bem, sem grande dificuldade, mas a segunda começou a sangrar. Então, não sei o que me deu, acho que é uma coisa muito natural, aprofundei a ferida e depois, sem poder deixar de o fazer, com um só golpe, cortei-lhe a cabeça.

O filme tem tudo a ver com isso. A última história, que se passa num casamento, mais parece um quadro de Dali de tão surreal. Quem mandou levar a amante para o próprio casamento? E na história em que participa Ricardo Darin, o mais importante ator argentino, vemos um engenheiro que mexe com explosivos surtar após ser submetido ao processo kafkaniano da burocracia de seu país (nós brasileiros compreendemos bem o que é isso).

O que seria necessário para chacoalhar seus pilares civilizatórios e revelar a besta que há dentro de você, caro leitor? Espero que nunca descubra. Mas é sempre bom saber que nenhum de nós está completamente livre desse animal selvagem que está presente em nossas entranhas, nossos genes, ao contrário da visão romântica e idílica de Rousseau e os defensores do “bom selvagem”…

PS: Nada disso, naturalmente, deve aliviar o fardo e a punição de quem comete crimes, nem relativizar sua culpa, como quer parte da esquerda. Karl Kraus disse: “Quando alguém se comportou como um animal, ele diz: ‘Ora, eu sou só um ser humano!’ Mas quando é tratado como animal, ele diz: ‘Ora, eu também sou um ser humano!'”. Tentamos compreender, mas cobramos punição exemplar também.

Rodrigo Constantino

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