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Uma lata de fezes é só uma lata de fezes

Obra de arte?

Por Aluízio Couto, filósofo em Ouro Preto

“Você está brincando! Isso são apenas tijolos”, disse uma mulher ao se deparar, em uma galeria de arte, com a celebrada obra “Pile of Bricks”, de Carl Andre. O rosto de estupefação da incauta cidadã pode ser visto no bom documentário “Why Beauty Matters”, cuja condução é do filósofo Roger Scruton. O ultraje pode ir ainda mais longe: em 1961, o italiano Piero Manzoni encerrou as próprias fezes em pequenas latas e chamou o resultado de “Merda d’artista”. Há poucos anos, um colecionador comprou uma das latas por alguns milhares de euros. Poucas vezes o conto do Rei Midas pôde ser aplicado a um caso de forma não completamente metafórica. Uma vez que o lastro das moedas é dado pelo ouro, a obra de Manzoni é um desses casos. Mas é também possível, no entanto, transferir o ultraje para o campo ontológico. No começo da década de 1970, Michael Craig-Martin colocou um copo de água sobre um suporte de vidro e deu ao resultado o nome de “An Oak Tree”. Em uma entrevista, Craig-Martin disse que, de fato, o trabalho era uma árvore de carvalho porque ele havia decidido chamá-lo assim.

As três obras têm algo em comum: são exemplos do que se chama “arte pós-moderna” ou “arte conceitual”. Um dos principais objetivos da arte pós-moderna é o de romper com os valores estéticos da arte clássica, associada à burguesia. Os valores estéticos de um quadro de Velásquez são, assim, aqueles ostentados pela classe dominante. Fazer arte, de acordo com a concepção pós-moderna, é uma declaração política, um grito de independência em relação ao ancién regime artístico. Para terem sucesso, esses artistas contam com intrincadas teorias filosóficas, das quais o pós-estruturalismo é destaque, e com a anuência de galerias e empresários do mundo artístico. As galerias exibem as obras, o valor de mercado delas sobe e os artistas ficam ricos. Quando perguntados sobre a natureza do que fazem e exibem, artistas e galeristas costumam recorrer a uma prosa impenetrável para quem não é familiarizado com a obscura prosa francesa contemporânea.

Uma característica de muitas obras desse gênero dá uma pista para explorar o valor artístico da arte pós-moderna, ou pelo menos de boa parte dela: a ausência dos atributos típicos que notamos nas obras de arte comuns. Obras de arte paradigmáticas, como a escultura romana “Augusto de Prima Porta”, exibem grande beleza e dão vestígios inequívocos de apuro técnico e refinamento estilístico. O apuro técnico, em si, não é um atributo estético, mas não seria razoável pensar que o espanto que a obra causa por sua beleza seria possível sem a perícia do artista. Obras como as citadas no primeiro parágrafo não são belas, dispensam o apuro técnico e fazem pouco caso do refinamento. Nunca ficou claro para mim o papel dos atributos estéticos nesse tipo de manifestação artística, mas imagino que não haja papel algum. Para mostrar isso, proponho um simples experimento mental. Dele vou extrair algumas consequências provisórias.

Vamos supor que haja um exímio falsificador anônimo disposto a reproduzir, nos mínimos detalhes, “Augusto de Prima Porta”. O falsificador estuda as técnicas originais, busca o mesmo mármore, adquire com incrível competência até mesmo os traços do artista original e se põe a esculpir. Terminado o trabalho, ele coloca o resultado final à venda. A pergunta que fazemos é: qual seria o valor que um eventual comprador estaria disposto a pagar? Intuitivamente, respondemos “uma boa quantia”. E a razão é que, embora não se trate da obra original, a cópia bem feita preserva os atributos estéticos do original: beleza, simetria, proporções, etc. Ou seja, o que o comprador está disposto a gastar pela falsificação reflete a presença desses valores estéticos tradicionais. 

Imaginemos agora que o mesmo falsificador reproduza fielmente algo como “An Oak Tree”. Não precisamos ter uma imaginação especialmente acurada para concluir que ele nada conseguiria com um copo de água sobre um suporte de vidro. Isso aponta para algo interessante: o valor de mercado da falsificação de “Augusto de Prima Porta” parece refletir a permanência de atributos estéticos relevantes, ao passo que o fato de o preço da falsificação do copo de água de Craig-Martin ser zero indica que nada sobrou de interessante na cópia (não vou abordar a polêmica de quais são esses atributos, mas imagino que o leitor comum não veja muito mérito artístico em um copo de água ou em uma lata de fezes). 

A principal conclusão a que chego é esta: quando vemos que nosso falsificador não conseguiria vender seu exemplar de “An Oak Tree”, logo emerge a suspeita de que o valor da obra original é inteiramente derivado de elementos não estéticos como a autoria, a tendência do momento e a anuência de uma instituição de prestígio. Qualquer pessoa disposta a defender que os exemplos de arte pós-moderna citados neste texto são instâncias genuínas de arte se comprometerá, penso, com a ideia não muito intuitiva de que é possível haver arte sem quaisquer atributos estéticos relevantes. Dadas as características do mundo artístico de hoje, isso é o mesmo que defender que qualquer coisa será arte se tiver a autoria correta e estiver inserido na comunidade correta. 

Isso, claro, não é muito mais do que recorrer à uma “espécie” bastante exigente de teoria institucional da arte. Mas é de se duvidar que tal teoria esteja correta: em primeiro lugar, parece ter havido arte reconhecida como tal mesmo na ausência da quase generalidade das instituições artísticas. Em segundo lugar, e isso talvez reforce a primeira afirmação, há argumentos que tentam estabelecer uma perspectiva evolucionista para o instinto artístico. O proponente mais famoso dessa perspectiva é Dennis Dutton. Em terceiro lugar, mesmo que as instituições sejam relevantes, elas podem ser apenas necessárias para um objeto ser arte, e não suficientes. E sejamos francos: não é fácil pensar em como um conjunto de tijolos pode ser arte sem atribuir às instituições certa onipotência ontológica.     

A outra conclusão é a seguinte: para decidir como devemos considerar o valor artístico de uma obra qualquer, não é de todo infrutífero explorar o mérito da falsificação da própria obra. Não é implausível argumentar que o substrato estético de qualquer obra se revela com mais nitidez quando desconsideramos fatores como a autoria e as instituições artísticas. Quando passamos essa régua, vemos com mais clareza que uma lata de fezes nada mais é do que uma lata de fezes. E, por fim, notamos que talvez a única teoria possível de ser brandida pelo defensor da arte pós-moderna é uma versão muitíssimo pesada do institucionalismo.   

Roger Scruton sugeriu que o empobrecimento da arte contemporânea é explicado pela negação do religioso e do transcendente. A arte medieval, por exemplo, transporta-nos para algo além de nós próprios. Nos afrescos religiosos típicos da época, temos um vislumbre, se não da eternidade, da sensação da eternidade. Categorias como belo e sublime eram testemunhas do divino, e o assombro causado pela obras sublimes tinha como uma de suas fontes primordiais o próprio mistério do mundo.

Vale a pena encerrar com uma breve objeção moral do escritor Mario Vargas Llosa. Segundo Llosa, as belas artes refletem virtudes pessoais como a dedicação, o treino, a competência, o apuro e a paciência. Um quadro de Velásquez não deixa de ser uma testemunha da virtudes do artista. Por outro lado, os artistas pós-modernos alcançam a fama sem pagar o preço pelo reconhecimento justo. A frivolidade das sociedades contemporâneas é sua aliada. As manifestações artísticas pós-modernas relevam não apenas a deficiência estética, mas também a deficiência do espírito.  

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