
A propaganda infantil está uma vez mais no centro dos debates políticos, com o avanço da legislação que pretende proibir qualquer tipo de comercial voltado ao público infantil.
Anunciantes, agências de publicidade e veículos tentam suspender no Congresso Nacional os efeitos de resolução da SDH (Secretaria de Direitos Humanos) de proibir propaganda infantil para crianças no país, anunciada há uma semana.
O deputado Milton Monti (PR-SP), presidente da Frente Parlamentar da Comunicação Social, apresentou anteontem um projeto de decreto legislativo para sustar os efeitos da resolução 163 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), ligado à SDH.
Publicada no “Diário Oficial” no dia 4, a resolução considera abusiva “a publicidade e a comunicação mercadológica dirigida à criança [até 12 anos] com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”.
Abaixo, meus “dois cents” sobre o assunto, primeiro um artigo que escrevi para o Ordem Livre, e depois um vídeo caseiro que gravei:
Propaganda infantil
Há em curso uma crescente tentativa de regular mais ou até mesmo proibir a propaganda voltada ao público infantil. Parte desta luta pode ser atribuída aos interesses perversos de forças estatizantes que adorariam ver os canais da mídia cada vez menos independentes. Com a perda de importantes anunciantes, como produtores de biscoitos ou refrigerantes, os veículos de comunicação dependeriam mais e mais da propaganda ligada ao estado. Como o cão não morde a mão que o alimenta, eles ficariam subservientes aos interesses do governo.
Mas aqui não vou tratar deste caso, que sem dúvida existe e deve ser levado em consideração. Vou lidar apenas com a parcela bem-intencionada, que apresenta ao menos um ponto legítimo: crianças são imaturas, não possuem condições de discernimento e se tornam alvos mais influenciáveis dessas propagandas. A obesidade precoce é uma doença que cresce no mundo todo, com graves conseqüências pessoais e sociais. Como evitar este risco? Seria por meio da proibição de comerciais que estimulam o consumo desenfreado de ”porcarias”?
Quem tratou do assunto foi o psiquiatra Theodore Dalrymple, em um artigo presente no excelente livro Anything Goes. Meus pontos convergem tanto aos dele que vou basicamente resumi-los abaixo. Logo de cara, ele deixa claro que condena, do ponto de vista moral, tais propagandas:
Por definição, as crianças pequenas não são totalmente capazes de fazer suas próprias decisões sobre as coisas, e parece-me que as propagandas dirigidas a elas para levá-las a fazer coisas que possam ser permanentemente prejudiciais a elas, para ter um lucro, ou melhor, um lucro extra, são imorais.
Para começo de conversa, nem tudo aquilo que é imoral deve ser ilegal. Podemos pensar em vários exemplos, como a prostituição. É absolutamente legítimo considerá-la um ato degradante e imoral, mas nem por isso devemos demandar a prisão de adultos que se envolvem em trocas sexuais voluntárias. Portanto, podemos concordar (ou não) com a imoralidade de se criar propagandas sedutoras que causam mal à saúde das crianças indefesas, mas isso não seria necessariamente motivo para a sua proibição.
Só que há outro ponto importante em jogo aqui. A transferência de autoridade dos pais para o estado. Dalrymple toca no cerne da questão: “Esta transferência de autoridade é um fenômeno de massa, caso contrário, a epidemia não teria ocorrido. Os pais já não parecem no controle de quanto de televisão seus filhos assistem, o que seus filhos compram com o seu dinheiro ou mesmo o que comem em casa”.
Podemos pensar em várias causas para este fenômeno, o que daria não um novo artigo, mas um livro inteiro. Adultos infantilizados, ou “senhorzinhos satisfeitos”, como diria Ortega y Gasset, agiriam como crianças mimadas que pensam ter “direito” a tudo aquilo que a civilização alcançou, sem compreender como chegamos a tais conquistas. Elas passam, então, a olhar para o “deus” laico moderno, o estado, como um Pai que vai atender todas as suas demandas e assumir a responsabilidade em seus lugares.
Saber frear os próprios apetites, como compreendia Edmund Burke, é condição necessária para ser livre. Esta característica está em falta na atualidade. Os pais seriam, por esta ótica, crianças crescidas, tendo de educar suas próprias crianças.
Talvez os pais modernos, ambos trabalhando fora o dia todo, sintam-se culpados e tentem compensar, deixando seus filhos tomarem conta da situação em casa. Talvez eles sejam egoístas demais, em uma visão individualista atomizada e exacerbada, e considerem o sacrifício necessário para a boa educação um fardo demasiado. Ou talvez, em uma visão hedonista deturpada, eles pensem que permitir aos filhos tudo o que querem seja uma expressão de amor profundo. Seria o carpe diem levado ao extremo da irresponsabilidade.
Seja lá qual for a causa (ou causas), o mais chocante é justamente esta transferência de autoridade e responsabilidade. Os pais olham impotentes para seus filhos mimados (e obesos), e buscam no estado o guardião de sua saúde. Este fenômeno é bem mais preocupante do que os interesses obscuros dos estatizantes, pois ele representa uma ameaça muito maior à liberdade. Há bastante demanda e apelo dos próprios pais por tais restrições e maior controle estatal, eis o ponto-chave aqui. E, como sabemos desde o século 16 com Étienne de La Boétie, não há nada mais perigoso do que a “servidão voluntária”, pois ela preserva as aparências da liberdade.
Dalrymple tenta justamente abordar este outro lado: “Não é que eu ache que a proposta de o governo proibir a publicidade de produtos nocivos para as crianças pequenas seja errada; o que me incomoda é a incapacidade de reconhecer que há qualquer outra dimensão ao problema, uma dimensão que é de fato muito mais grave”. E, em seguida, ele vai direto ao ponto nevrálgico:
É sempre mais seguro, do ponto de vista de ganhar a estima da ‘intelligentsia’ e de evitar a sua censura, culpar as autoridades ou aqueles em grandes corporações, em vez de as pessoas ‘comuns’, que são, por definição, vítimas inocentes. Mas absolver as pessoas comuns de todas as culpas pela obesidade de seus filhos, simplesmente omitindo de mencioná-las por completo, é negar-lhes a propriedade de seres humanos plenos.
O mesmo vale para a crise das hipotecas americanas e europeias. Automaticamente os dedos acusatórios voltaram-se na direção dos grandes bancos, ignorando a responsabilidade do indivíduo, do homem comum que aceitou um grau de endividamento absolutamente ousado, para dizer o mínimo. Blindar o “homem ordinário” contra seus próprios atos, transformando-o em uma simples marionete de forças maiores, é o caminho mais rápido para a servidão. Todo tipo de tutela paternalista e controle estatal passa a ser defensável, se cada um não passa de um mentecapto indefeso.
Se nós aceitarmos que a responsabilidade pela dieta adequada de nossos filhos cabe ao estado, então nós aceitamos a premissa do totalitarismo. O fato surpreendente de tal questão sequer permear os debates sobre o tema da propaganda infantil já denota a era preocupante em que vivemos. Os pais perderam a capacidade de impor limites aos seus filhos? Eles precisam pedir ajuda ao estado, que assumirá as funções mais básicas da paternidade? Se seguirmos nesta direção, então o futuro será sombrio. Melhor deixar a propaganda infantil em paz, e cada um retomar as rédeas da educação de seus filhos.
Agora o vídeo:
httpv://youtu.be/SXSt-JtXpS4
Rodrigo Constantino



