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Resgate social

Como funciona a internação involuntária de dependentes químicos em Santa Catarina

Municípios de Santa Catarina aderem à internação involuntária como forma de resgatar a vida de dependentes químicos.
Municípios de Santa Catarina aderem à internação involuntária como forma de resgatar a vida de dependentes químicos. (Foto: Thiago Kaue/Governo de Santa Catarina )

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Mais de 12 mil pessoas vivem em situação de rua em Santa Catarina, muitas delas com dependência química ou transtornos mentais graves que as impedem de decidir sobre seu próprio futuro e tratamento — o número é do governo estadual. Municípios como Chapecó, Florianópolis, Blumenau, Criciúma e Balneário Camboriú têm recorrido à internação involuntária, respaldada por leis municipais e pela legislação federal.

De acordo com o poder público, a medida é aplicada quando se esgotam todas as alternativas de atendimento fora do hospital e busca conciliar proteção à vida, cuidado humanizado e segurança pública. Em julho, o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL-SC), sancionou a Lei 19.380. A norma cria um cadastro de pessoas em situação de rua e o sistema usa tecnologia para reconhecimento facial e localização por GPS.

A ferramenta funciona como um prontuário digital: reúne fotos, biometria, histórico de dependência química e saúde mental, vínculos familiares, antecedentes criminais e benefícios sociais. O sistema ajuda a mapear pessoas que podem precisar de internação involuntária ou compulsória.

Chapecó foi pioneira na internação involuntária e reinserção social

Chapecó, na região oeste catarinense, foi um dos primeiros municípios a adotar a internação involuntária, em 2022. O programa “Mão Amiga”, instituído pela Lei 8.019, é voltado a pessoas com dependência química e alcoólica.

Conforme informações prestadas pela prefeitura de Chapecó, o programa atendeu 614 pessoas. Destas, 283 se recuperaram e 88 continuam em tratamento. Outras 56 retornaram ao município de origem. Houve 152 recaídas. Já 35 estão em outras situações, como prisão ou morte, segundo a administração municipal.

Neste ano, a prefeitura inaugurou uma unidade de acolhimento para 148 pessoas em situação de rua. O espaço conta com refeitório, cozinha, banheiros, auditório, campo de futebol, piscina e horta. O programa também oferece cursos profissionalizantes e frentes de trabalho para reinserção no mercado.

“Estamos libertando essas pessoas da escravidão das drogas e dando oportunidade de uma nova vida”, afirmou o prefeito João Rodrigues (PSD). Um dos primeiros internados em Chapecó é um pintor, de 30 anos.

“Passei três anos na rua. Fui internado sete vezes por vontade própria, mas só com a internação involuntária consegui mudar. Estou 'limpo' há quase dois anos. Recuperei minha família, abri minha empresa de pintura residencial e predial e me batizei na igreja”, relatou ele à Gazeta do Povo.

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Florianópolis utiliza reconhecimento facial para identificar pessoas em situação de rua

Na capital do estado, Florianópolis, circulam diariamente cerca de 800 pessoas em situação de rua, segundo o prefeito Topázio Neto (PSD). O mapeamento é feito pelo aplicativo "Acolher", que utiliza reconhecimento facial e registra o histórico de cada pessoa abordada.

“Ninguém em situação de rua fica sem ajuda”, afirmou o prefeito em entrevista à Gazeta do Povo, citando serviços de abrigo, alimentação, atendimento médico e oficinas de capacitação. A prefeitura de Florianópolis publicou, recentemente, o chamamento público para credenciar instituições especializadas no atendimento de pacientes que necessitam de cuidados em saúde mental.

O foco será, principalmente, em casos que demandem encaminhamentos para internação involuntária na capital. O objetivo é ampliar a capacidade de internações existentes, para a oferta do que a prefeitura considera como um tratamento completo, com duração de até três meses.

A internação compulsória é determinada pela Justiça, já a involuntária é um ato médico, humanitário e de saúde. Não é força ou repressão.

Topazio Neto (PSD), prefeito de Florianópolis

Desde janeiro, 46 pessoas foram internadas e 21 ainda permanecem em tratamento. Topázio Neto enfatizou que a internação involuntária ocorre apenas em casos graves, quando a pessoa não consegue decidir por si. A decisão é tomada por equipes de saúde, segurança e assistência social, com avaliação final de um psiquiatra. “Vale destacar que a internação compulsória é determinada pela Justiça, já a involuntária é um ato médico, humanitário e de saúde. Não é força ou repressão", salientou.

O prefeito defendeu a medida, diante de críticas recebidas. “Alguns dizem que estamos tirando o direito de liberdade de escolha de viver na rua. Mas há um direito maior que queremos garantir: a vida", disse ele.

Internação involuntária em Blumenau foi regulamentada no ano passado

Em Blumenau, no Vale do Itajaí, a internação involuntária de pessoas em situação de rua com transtornos mentais ou dependência química é regulamentada pela lei complementar 1.573/2024. Segundo dados da Assistência Social, oito pessoas já foram internadas: três estão em processo de resgate familiar, três continuam tratamento em comunidades terapêuticas após alta, e uma permanece internada.

A medida é usada, conforme a gestão pública local, apenas quando esgotadas todas as possibilidades da rede psicossocial, com laudo médico e avaliação de uma câmara técnica de assistência social e saúde. A lei exige internação hospitalar, garantindo atendimento médico, psicológico, social, ocupacional e de lazer. Após a alta, os pacientes recebem acompanhamento intersetorial voltado à reinserção familiar, social e no mercado de trabalho.

Em Blumenau, a internação involuntária é regulamentada pela lei complementar 1.573/2024.Em Blumenau, a internação involuntária é regulamentada pela lei complementar 1.573/2024. (Foto: Giovanni Silva/Prefeitura de Blumenau)

“Blumenau é uma cidade de pleno emprego e conta com uma rede de assistência social estruturada, incluindo clínicas e parcerias públicas e privadas. Não há motivo para permanecer nas ruas. Quem quer trabalhar encontra vagas, quem precisa fazer os documentos pessoais recebe apoio, e quem deseja reencontrar a família tem a viagem custeada, quando assim for necessário”, destacou o prefeito Egidio Ferrari (PL), em entrevista à Gazeta do Povo.

O prefeito citou um caso que, conforme ele, foi emblemático em Blumenau: um homem passou cerca de dez anos nas ruas, morando embaixo de uma ponte com seu cachorro. "Após insistência das equipes e a garantia de que poderia levar o animal, ele foi levado para internação. Passou meses em tratamento, participou de oficinas profissionalizantes, e voltou a viver com a família em um município vizinho".

As ações são coordenadas pela Secretaria de Desenvolvimento Social, em parceria com médicos, enfermeiros, Guarda Municipal e polícias, garantindo acolhimento e segurança. “Quando alguém resgata um animal em situação de maus tratos, todos apoiam. Por que não apoiar o resgate da dignidade de um ser humano? Nosso objetivo é devolver essas pessoas para suas famílias, ao trabalho e à sociedade".

Em Criciúma, prefeito passou 24 horas vivendo como morador de rua

No Sul do estado, Criciúma aprovou, no dia 5 de agosto, o projeto de lei nº 60/2025 que cria o programa municipal de internação involuntária de dependentes químicos e pessoas com transtornos mentais. A medida segue as Leis Federais nº 13.840/2019 e nº 10.216/2001, que tratam de saúde mental e políticas sobre drogas.

A internação só ocorre com laudo médico da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), detalhando a necessidade do procedimento, aplicado apenas quando não há outras opções de tratamento na rede pública, enfatiza a gestão municipal. O prefeito Vagner Espíndola Rodrigues, conhecido como Vaguinho (PSD), defendeu que a administração deve oferecer acolhimento digno a pessoas incapazes de decidir por si mesmas, especialmente em risco de vida.

Prefeito de Criciúma, Vaguinho Espíndola (PSD) passou 24 horas acompanhando de perto a realidade das pessoas em situação de rua no município. (Foto: Divulgação/Prefeitura de Criciúma)

“Precisamos agir com firmeza e sensibilidade, garantindo respeito, segurança e humanidade. Não é punição, é cuidado, respaldado por critérios técnicos e legais”, afirmou o prefeito de Criciúma. A necessidade do programa, justifica a prefeitura, surgiu da realidade observada nas ruas e da experiência do prefeito.

Vaguinho passou 24 horas de forma anônima vivendo como uma pessoa em situação de rua para, de acordo com ele, identificar as necessidades sociais. Apesar da rede de acolhimento, abrigo e Centro POP, muitas pessoas permanecem nas ruas devido ao uso de drogas, impactando também a segurança pública. “A Criciúma que acolhe também precisa ser segura. Vamos fortalecer o atendimento e recorrer à internação involuntária em casos extremos”, reforçou o prefeito.

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Projeto de lei em Balneário Camboriú propõe internação involuntária

Tramita na Câmara de Vereadores de Balneário Camboriú, no litoral norte do estado, o projeto de lei nº 207/2025, de autoria do Executivo municipal, chefiado pela prefeita Juliana Pavan (PSD). A proposta dispõe sobre o tratamento em regime de internação involuntária de dependentes químicos e pessoas com transtornos mentais no município, em acordo com as diretrizes do programa “Resgate à Vida BC”.

Conforme o projeto de lei, o crescimento de casos de pessoas em situação de vulnerabilidade social, especialmente pelo uso abusivo de substâncias psicoativas, demanda medidas legais que assegurem, de maneira responsável e segura, o atendimento em regime de internação involuntária, em casos em que a medida se demonstre necessária, estritamente nos termos das Lei Federais nº 10.216/2001 e nº 13.840/2019.

Segundo o diretor de abordagem social de Balneário Camboriú, Amarildo Sartor, o município conta com cerca de 160 pessoas em situação de rua, número que aumenta em época da temporada de verão. “A partir da lei aprovada, será aberto processo licitatório para a contratação de equipe multidisciplinar com psicólogo, médico psiquiatra, assistente social e enfermeiro, por meio de uma empresa terceirizada. Essa empresa fará a avaliação das pessoas que necessitam de internação involuntária ou compulsória mapeadas pelo serviço de abordagem", explicou.

Santa Catarina tem mais de 12 mil pessoas em situação de rua, segundo dados do CadÚnico. (Foto: Giovanni Silva/Prefeitura de Blumenau)

SC teve aumento de 75,9% na população de rua; maioria tem de 18 a 39 anos

Um levantamento do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), divulgado no início deste ano, aponta que Santa Catarina registrou 9.989 pessoas em situação de rua em 2023, o que representa um aumento de 75,9% em relação a 2021.

O estudo detalha o perfil da população em situação de rua no estado: a maioria é composta por homens (8.918), enquanto 1.071 são mulheres. Em termos étnicos, 6.136 são brancas e 3.756 negras. A faixa etária predominante é de 18 a 39 anos (47,9%), seguida por pessoas entre 40 e 59 anos (45,2%). Quanto à escolaridade, 4.227 pessoas têm ensino fundamental incompleto. Chega a 1.351 as pessoas que apresentam algum tipo de deficiência.

O levantamento aponta os municípios com mais pessoas em situação de rua e sua proporção em relação ao total do estado:

  • Florianópolis: 2.749 pessoas – 27,52%
  • Joinville: 1.116 – 11,17%
  • Itajaí: 644 – 6,45%
  • Blumenau: 504 – 5,05%
  • Balneário Camboriú: 428 – 4,28%

A Secretaria de Assistência Social, Mulher e Família do Estado (SAS) aponta para números mais altos: são 12.219 pessoas em situação de rua, segundo dados do Cadastro Único (CadÚnico), de julho de 2025. Em relação ao trabalho, 82,4% (10.102) já tiveram emprego com carteira assinada. Os meios de subsistência utilizados incluem:

  • construção civil: 11,6% (1.420)
  • "flanelinha": 1,8% (220)
  • carregador/estivador: 2,2% (270)
  • catador de material reciclável: 11,9% (1.458)
  • serviços gerais/limpeza: 15% (1.837)
  • pedir dinheiro: 11,3% (1.390)
  • vendas: 6,6% (815)
  • outros meios: 23,2% (2.846)
  • não respondeu: 35,7% (4.370)

O total de registros por meio de subsistência pode ultrapassar 100%, já que uma mesma pessoa pode ter indicado mais de um meio de subsistência.

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MP aponta fragilidades no atendimento a pessoas em situação de rua em SC

O Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC) afirma que há fragilidades nos serviços oferecidos à população em situação de rua em 13 municípios catarinenses. Entre os principais problemas estão a falta de Centros de Atenção Psicossocial (Caps), a ausência de Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centros POP) e a carência de estrutura mínima nos Consultórios na Rua.

"A expectativa é de que esse trabalho contribua para a formulação de uma política pública estadual mais robusta, intersetorial e humanizada", disse o coordenador do Centro de Apoio de Direitos Humanos e da Saúde Pública, promotor de Justiça Eduardo Sens dos Santos.

Um levantamento do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE-SC) também apontou o que considera como deficiências na adoção de medidas pelos municípios catarinenses, em 2022, na assistência a crianças, adolescentes, idosos e pessoas em situação de rua nos municípios catarinenses.

O estudo analisou respostas a questionários e mobilizou gestores da assistência social em reuniões com o colegiado estadual; de 295 municípios, 277 (93,9%) participaram. Entre os problemas estão a falta de leis municipais do Sistema Único de Assistência Social (Suas), ausência de atendimento e de unidades de acolhimento, e ao controle social, como o saldo de recursos financeiros no Fundo Municipal da Criança e do Adolescente (R$ 159 milhões), e no Fundo Municipal da Pessoa Idosa (R$ 57,9 milhões).

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